O Mistério do Mongo Velho

 

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peça de Ruth Salles

Esta peça baseia-se numa narrativa homônima de meu tio, o professor de História João Baptista de Mello e Souza¹, em seu livro Histórias do Rio Paraíba. Nessa narrativa, que faz parte de suas lembranças de menino, o autor tira do esquecimento a singular figura de Vuitir, o cacique puri que traz sua gente para ajudar a fundar a aldeia de Queluz. Porém, inconformado depois com a escravidão do negro e não podendo acabar com ela, Vuitir resolve voltar para a vida da mata, e nunca mais é visto. Torna-se uma espécie de rei Dom Sebastião dos negros de Queluz, do início do século XX, que sempre esperavam seu retorno.

Mongo era a palavra usada para designar um chefe de vários caciques, que era o caso de Vuitir². Na peça, a personagem chamada Joãozinho, o garoto que descobre a verdade sobre a cantoria dos negros a respeito do Mongo Velho, é o próprio professor João Baptista quando menino. Na narrativa dele encontrei a letra do “Canto do Mongo Velho”. Mas, como ali não constava a notação da melodia, baseei-me numa melodia afro-brasileira do livro Estudos de Folclore, de Luciano Gallet. No fim da peça, os índios cantam o “teiru”, que é um lamento pela perda de um cacique.

 

PERSONAGENS:
Coro do Tempo / Coro dos Narradores / Grupo do Vento.
Personagens do Presente: Grupo dos Pretos velhos / Joãozinho / seus amigos Oscar e Benedito / seu Padrinho e o empregado Bastião / padre Gaudêncio / a velha Maria Guilherme.
Personagens do Passado: Grupo dos Índios / Vuitir / o Feitor / Padre Lima.

 

A história passa-se em Queluz, cidade do Vale do Paraíba. Os Coros do Tempo e dos Narradores, se possível, devem ficar num plano mais alto, um de cada lado da cena. As outras personagens se agrupam logo abaixo dos Coros e se destacam do grupo na hora de entrar em ação. O grupo dos Pretos Velhos e o grupo das personagens do Passado atuarão no centro; João, seus amigos Oscar e Benedito, e o padre Gaudêncio atuarão mais à esquerda; o Padrinho, Bastião e Maria Guilherme, mais à direita. O Grupo do Vento pode partir do lado em que estiver o Coro do Tempo. Estas são apenas sugestões que podem ser mudadas à vontade, conforme a imaginação, a experiência e o critério do professor. Os grupos que cantam (dos Pretos Velhos e dos Índios) devem ter o apoio dos Coros.

CORO DO TEMPO:
– Vuitir!
Quem sabe a história do índio puri,
que o vento do tempo levou na carreira?
Vuitir!
Cacique das brenhas escuras da mata
da serra que o homem chamou Mantiqueira…

CORO DOS NARRADORES:
– Era o cacique mais respeitado da serra.
Por isso, foi chamado Mongo:
chefe dos chefes daquela terra.

CORO DO TEMPO:
– Quem vai despertar sua memória?
– Venha, vento! Sopre seu nome, sopre!
Quem sabe alguém indaga e faz de seu nome
História!

GRUPO DO VENTO (correndo em cena):
– Vvvvv Vuitir! Vvvv Vuitir!
Ah, os homens estão sempre
tão ocupados…
Mas ali vejo um menino
que parece interessado.
Da boca dos pretos velhos
vou passar-lhe meu recado.

CORO DO TEMPO:
– Que se levante o Passado
nas asas de uma cantiga,
na cidade de Queluz,
à beira do Paraíba!

CORO DOS NARRADORES:
– Por volta de 1900
e por causa de um menino
que se chamava João,
desperta uma história antiga
que dormia na canção.

OSCAR (chamando):
– Êh, Joãozinho!

JOÃO (chega correndo):
– Que foi, Oscar?

OSCAR (apontando para os pretos velhos):
– Hoje é o 13 de maio! E eu fiquei sabendo que os pretos velhos vão lembrar o tempo da escravidão cantando o Canto do Mongo Velho! Vamos ouvir?

JOÃO (admirado):
– Mongo Velho? Mas mongo é nome de índio!
Que cantiga será essa de preto velho relembrando um índio? Muito estranho!
(avistando Benedito): – Êh, Benedito, venha ouvir conosco! (Benedito chega correndo)

GRUPO DOS PRETOS VELHOS (canta):
“Nanhã-nã, nanhã-nã,
nanhã, nananhã, nananhã-nã-nã.
Eu vô na vila pra comprá um cobertô…
Eu tô duente, vô tomá um suadô. (estes dois versos são cantados outra vez)
Foge, feitô! Mongo Véio vai vortá!
Foge, feitô! Tarumã, tarumá!
Passei corgo, passei rio,
subi morro, passei mato,
vi a cruz do Passa-Quatro,
vi caboco frechadô.
Andei perdido
no sertão do Embaú,
fui mordido de urutu…
Mongo Véio não vortô…
Foge, feitô! Mongo Véio vai vortá!
Foge, feitô! Tarumã, tarumá!” (esta frase se repete baixinho e some)

BENEDITO:
– Joãozinho, quem será que foi esse tal de Mongo Velho, do tempo da escravidão?
Você, que é filho da professora, deve saber.

JOÃO (cismado):
– Não sei, não…

OSCAR:
– Ora, vai ver que é uma figura inventada pra canção.

JOÃO:
– Pois eu acho que ele existiu.
Se os escravos ameaçavam o feitor com a volta dele!
Você não ouviu, Oscar?
“Foge, feitor! Mongo Velho vai voltar!”

OSCAR:
– É, mas depois eles dizem: “Mongo Velho não voltou…”

JOÃO (cismado):
– Vai voltar… E não voltou…

BENEDITO: – Mas, voltar? Voltar de onde?
Então ele estava aqui, depois foi embora!

JOÃO (primeiro cisma, depois decide):
– Pois é… Ah, mas vocês escutem bem:
ou eu descubro quem foi esse Mongo da canção,
ou não me chamo João!

(João se dirige para a direita com um cesto na mão, em direção ao Padrinho e ao Bastião.)

CORO DO TEMPO:
– Lá vai indo o Joãozinho,
buscar laranjas no pomar
da fazenda de seu padrinho.
Vai distraído e pensativo,
caminhando devagarinho.

PADRINHO (chama Bastião):
– Êh, Bastião! Vá abrir a porteira pro menino!

BASTIÃO (corre para João, no centro da cena):
– Nhô Joãozinho, ande depressa, senão nhô Capitão sorta outro berro, que nem Mongo Véio!

JOÃO (espantado):
– Que foi que você disse, Bastião? Mongo Velho? Que Mongo Velho é esse?

BASTIÃO:
– Num sei, não.A gente fala nesse home, mas ninguém num sabe quem foi. Tarvez o Capitão saiba!

(João vai com Bastião ao encontro do Padrinho, e este vai pondo laranjas em seu cesto.)

CORO DO TEMPO:
– Quantas histórias o velho conta para o menino…
Dando laranjas, fala da gente do tempo antigo…

JOÃO:
– Por falar em gente antiga, Padrinho, o senhor sabe quem foi esse Mongo Velho da cantoria dos antigos escravos?

PADRINHO:
– O Mongo foi um cacique dos índios puris, lá da serra da Mantiqueira. O nome dele era Vuitir.
Sabe, Joãozinho, é melhor você ir até a igreja e pedir ao padre Gaudêncio o livro número um do Tombo da Matriz.
O padre Lima, que foi o primeiro vigário que Queluz teve, escreveu naquele tempo um resumo dessa história.

JOÃO (animado):
– Ah, eu vou agora mesmo! Isto é, depois de entregar as laranjas à minha mãe.

PADRINHO:
– Pois vá, menino! Vá com Deus, Joãozinho!

JOÃO (sai correndo):
– Muito obrigado pelas laranjas. Até à vista, Padrinho!

(João se dirige para a direita, onde está o padre Gaudêncio, que lhe mostra o livro.)

CORO DOS NARRADORES (dizendo o texto do livro lentamente):
– No ano da graça de 1800,
havendo de dar estabelecimento a uma corporação de índios selvagens,
se lhes consignou uma porção de terra para sua morada,
em que também se mandou erigir uma igreja matriz e arruamento de casas,
com o título de “Nova Aldeia de São João de Queluz”.

CORO DO TEMPO (enquanto Oscar e Benedito se juntam a João):
– Olhem!
Joãozinho está lendo o que foi escrito
e vai contar ao Oscar e ao Benedito!

OSCAR:
– Diga logo, Joãozinho, o que o padre Lima escreveu aí!

JOÃO:
– Ele escreveu que o Capitão-mor que governava São Paulo quis que os índios puris viessem se juntar a um grupo de gente civilizada, para que uma aldeia pudesse ser fundada aqui. Os índios não queriam, mas o Capitão pediu o apoio do Mongo Vuitir, um cacique muito conhecido, que costumava guiar os brancos pelos caminhos da mata.

BENEDITO:
– E o Mongo Vuitir trouxe os puris?

JOÃO:
– Trouxe umas oitenta famílias, contanto que sempre fossem muito bem tratadas.
E foi assim que nasceu Queluz, a nossa cidade!

OSCAR (curioso):
– E depois? Que mais conta o padre Lima?

JOÃO (solene):
– Conta que esse Mongo Velho de repente resolveu ir embora e se internou de novo na mata.
Escutem só o que está escrito aqui: “E nunca mais se soube notícia dele”…

BENEDITO:
– Por que será? Que mistério…

OSCAR:
– Deve ter acontecido alguma coisa…

JOÃO:
– Alguma coisa muito séria!

CORO DO TEMPO (enquanto João se dirige a Maria Guilherme, no centro):
– Olhem, Joãozinho vai falar
com os mais antigos do lugar,
que ainda eram pequeninos
quando a história teve lugar.
Maria Guilherme, tão velhinha,
já não se lembra do Presente,
mas tem bem gravado o Passado
e o repete sempre, sempre,
num estranho palavreado.

MARIA GUILHERME:
– Mongo Velho Vuitir era bom,
trouxe gente, trouxe mais gente.
Veio o padre, Mongo fez festa.
Mongo Velho estava contente.
Aos depois andou campeando
pelo mato, guiando branco.
Quando Mongo Velho voltou,
tinha chegado uma porção
de gente escrava, nêgo preto,
com corrente presa nos pés,
com ferro em volta do pescoço.
E Mongo Velho ficou brabo!
Mongo Velho gritou três vezes,
gritou três vezes com homem branco.

(Durante as últimas palavras de Maria Guilherme, Vuitir se destaca com seus índios, e mais o feitor e o padre Lima. É a cena do Passado.)

VUITIR (zangado):
– Tirem corrente de homem preto! Deixem homem preto voltar taoára! Mandem embora feitor mau!

FEITOR:
– Fique quieto, Mongo Velho. Mongo cuida dos puris. Mongo não cuida dos pretos que têm ferro no pescoço.

VUITIR (grita):
– Mongo itauarassu rumaê!

MARIA GUILHERME (que está de lado, com João):
– Escute, menino! “Mongo itauarassu rumaê”
quer dizer: Mongo vai voltar pra serra…

VUITIR (grita mais uma vez):
– Mongo itauarassu rumaê!

PADRE LIMA:
– Vuitir, não vá! Fique em Queluz! Se Vuitir volta pra serra, os puris querem ir atrás…

VUITIR:
– Os puris nasceram livres. Os homens pretos também. Tirem ferro de homem preto. Mandem embora feitor!

PADRE LIMA:
– Não posso fazer nada, Mongo Velho. Isso é ordem que vem de cima.

VUITIR:
– Os puris ficam na taba de homem branco, mas o Mongo volta pra serra, pra junto de pedra, pra junto de rio, pra junto de planta e de bicho.

GRUPO DE ÍNDIOS (canta, enquanto Vuitir vai se afastando):
“Uaiê autiá harênêzê,
zalôkarê uêrôrêtô;
amôkitiá tano-han
nùitá tiá-hazakô:
ta-hã-re kalorê maucê,
uai nazarê uai-te kô.
Aaaahhhh!”

*1: MELLO E SOUZA, João Baptista de. Histórias do Rio Paraíba. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Aurora, Ltda.
*2: ROQUETE-PINTO, Edgard. Rondônia: Anthropologia-Etnographia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.

 

 

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