A Chama Sagrada

 

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Peça sobre uma lenda cristã

Esta peça, escrita em versos por Gottfried Richter, baseia-se numa das lendas cristãs da escritora sueca Selma Lagerlöf. A professora Mônica von Beckedorff fez a tradução literal, do alemão para o português. A partir dessa tradução, Ruth Salles recriou os versos. A lenda, cheia de encanto e fantasia, se refere às aventuras de um cavaleiro cruzado.

Sugerida para jovens de 12 a 13 anos.
PERSONAGENS:
Francesca
Raniero
Anjo da Luz
Bobo
Pastor
Estalajadeira
Povo
Vento
Quatro cavaleiros cruzados
Dois demônios
Cinco salteadores
Duas criadas
Duas mulheres
Dois nobres senhores
Dois coros de Narradores

NOTA: conforme o número de alunos, os Coros de Narradores podem ser constituídos por aqueles que não estiverem em cena no momento.

 

TODOS (entram cantando):
“Somos peregrinos a peregrinar.
Fomos escolhidos para procurar
pelo mundo afora uma nova luz, uma nova luz.
A escuridão se iluminará.
Essa luz o Cristo acenderá.
A escuridão se iluminará.
O Cristo acenderá.”

1º CORO:
– Há muitos e muitos anos atrás,
vivia em Florença um valente rapaz.
Por ser o mais forte de toda a região,
tornou-se violento, feroz, fanfarrão.
Causando desgostos por todos os lados,
em tudo queria ser sempre o primeiro;
porém mesmo assim era bem respeitado,
pois todos temiam o bravo Raniero.

FRANCESCA (entra falando tristemente):
– O amor que eu sinto pelo meu amado
era como um véu de tecido dourado,
porém pouco a pouco foi despedaçado.
Em sua violência, Raniero o rasgou
quando meu pai ele atraiçoou,
quando meu irmão ele humilhou,
quando meu passarinho ele quis flechar.
Por isso, apesar do meu grande amor,
para a casa de meu pai resolvi voltar.
– Vela por Raniero, ó Anjo protetor!
Olha o amor que minha alma sente!
Leva-o a agir corretamente!     (ela sai)

2º CORO:
– Pôs-se Raniero então ao mar
e, unido aos cruzados, foi guerrear.
Raniero, de todos, era o mais valente;
sua fama de forte crescia sempre.
Jerusalém, cidade sagrada,
devia ser reconquistada;
pois nela morreu e ressuscitou
Cristo Jesus, nosso Salvador.
E, após duras lutas, os bravos cruzados,
tomaram de assalto a cidade sagrada.   (passam Raniero e os 4 cavaleiros)

1º CAVALEIRO CRUZADO:
– Porém a maior glória coube a Raniero,
porque escalou as muralhas primeiro
e assim decidiu para nós a vitória.

2º CAVALEIRO CRUZADO:
– Vamos então prestar-lhe homenagem
por todos os atos de suma coragem.

3º CAVALEIRO CRUZADO:
– O Santo Sepulcro vamos visitar!

4º CAVALEIRO CRUZADO:
– Eia!! Todos a caminhar!             (vão caminhando)

ANJO DA LUZ:
– No dia em que o corpo de Cristo Jesus
no seio da terra foi depositado,
ali se inflamou a sagrada luz
na qual todo o mundo será renovado.

RANIERO:
– Serei o primeiro a acender minha vela
nos círios sagrados do Santo Sepulcro!

1º CORO (enquanto a cena se passa):
– Por tanta bravura,
Raniero assume o primeiro lugar.
Repleto de orgulho,
acende sua vela no fogo do altar.
E agora, cansados, os bravos cruzados
descansam nas tendas ali levantadas.

2º CORO (enquanto a cena se passa):
– Com toda a cautela,
Raniero protege a chama da vela.
Mas cresce em seu peito
o fogo do orgulho por seus grandes feitos.
No inferno, o Maligno se põe a rir,
pois eis uma alma a destruir.

(Os dois demônios aparecem saltando e cercam Raniero.)

1º DEMÔNIO:
– Passa por cima dos outros, Raniero!
Deves lembrar de ser sempre o primeiro!

2º DEMÔNIO:
– Pensa só em ti mesmo e nas homenagens
que te prestarão por tua coragem!

1º CORO:
– Porém Francesca, nessa mesma hora,
em sua casa ajoelha e ora.

FRANCESCA (aparece e se ajoelha, de mãos postas):
– É noite, já.
Onde Raniero descansará?
– Vela por ele, ó Anjo protetor!
Olha o amor que minha alma sente.
Leva-o a agir corretamente!

ANJO DA LUZ (caminhando até Raniero):
– Eu velo por ti.

1º DEMÔNIO:
– Ele me pertence!

2º DEMÔNIO:
– Ele me pertence!

ANJO DA LUZ:
– Só fareis o que eu deixar,
para o amor de Deus se manifestar.

1º DEMÔNIO:
– Eu o instigarei, então,
a seguir o caminho da perdição…

2º DEMÔNIO:
– A sagrada chama
fará arder em seu peito o anseio pela fama.
Quero já um mensageiro! Pronto! Ele já vem!

(O Bobo aparece, e o 2º demônio cochicha em seu ouvido.)

ANJO DA LUZ:
– Vou transformar o mal em bem.

1º CORO (enquanto a cena se passa só com gestos e risadas, mas em silêncio):
– Lá estão os cruzados fazendo algazarra,
bebendo e cantando nas tendas armadas.
Raniero, o valente, na luta é o melhor,
porém nos festejos se mostra o pior.
Depois das batalhas, é sempre um consolo
ouvir os gracejos pesados de um Bobo.

BOBO (canta; o 2º coro pode cantar junto):
“Preparai os ouvidos, senhores meus!
Contarei o que aconteceu.
Preparai os ouvidos, senhores meus!
Contarei o que aconteceu.
À Santa Cavalaria prestarei homenagem,
prestarei homenagem,
pois nela ainda reinam força e coragem.”

RANIERO:
– Vamos logo com isso, Bobo!

1º CAVALEIRO (com um caneco de bebida na mão):
– Ora, Raniero!
Bem-vindos sejam alguns gracejos
ao nosso bem regado festejo!

BOBO (continua sua história falando):
– Lá está São Pedro às portas do céu
olhando aqui em baixo o povaréu.
E ele vê como foi libertada
a terra que havia sido tomada.
E quem mais o agradou entre os cavaleiros
foi o herói que acendeu sua vela primeiro
no Santo Sepulcro, no fogo sagrado.

RANIERO (estende moedas ao Bobo, que as recusa):
– Toma estas moedas e desaparece!

2º CAVALEIRO:
– Não! Nada disso!
É preciso acabar o que se começa.

3º CAVALEIRO:
– E agora é que a história fica mais engraçada!

BOBO:
– São Pedro pensava: “Como o herói cuida bem
da chama, pois nenhum castiçal ele tem
e escora sua vela com pedras pesadas!
Será por respeito ao sacrifício de Cristo,
ou é só por orgulho que faz tudo isto?
Oh, não! Creio mesmo que esse feroz cruzado
em manso cordeirinho já foi transformado
pela chama que ele protege o tempo inteiro!…

4º CAVALEIRO:
– Essa é com Raniero, e ele não vai tolerar!
Vai agarrar o Bobo pelos colarinhos!

BOBO (continuando):
– O herói deixará seus ricos despojos,
honrará as velhas, os pobres, os fracos
e, com um olhar pio e beato
para Florença irá de volta.

RANIERO (avança para o Bobo e esbarra na vela):
– Olha que eu te esmago e te atiro na lama!

1º CAVALEIRO:
– Raniero! Cuidado! A chama!   (o Bobo aproveita e foge)

2º CAVALEIRO:
– O pobre do Bobo fugiu bem depressa…

3º CAVALEIRO:
– Ei, Raniero, como cumprirás a promessa
que fizeste à Madona da catedral de Florença?
Prometeste sempre levar-lhe
o troféu mais valioso de cada batalha,
para ver em Florença aumentar tua fama.
Desta vez, o troféu mais digno que tens é a chama.

4º CAVALEIRO:
– Acho que Raniero quebrará sua palavra,
pois nunca poderá levar a chama até em casa.

RANIERO (zangado, agarra o outro pelo braço):
– Patife! Que estás aí a murmurar?

4º CAVALEIRO (sem perder a calma):
– Que com uma vela acesa não se pode viajar.

1º CAVALEIRO:
– Passar por tantas léguas de terras inimigas
com uma vela na mão, é arriscar a vida!

RANIERO:
– Pois afirmo que a chama eu hei de levar,
e junto à imagem da Madona ela vai brilhar!

2º CAVALEIRO:
– Raniero, pensa bem no que estás dizendo.
Se deixas a cruzada, perdes direito ao prêmio
que, por tuas façanhas, te está destinado:
o título de duque e as terras de um ducado.

RANIERO:
– Pois juro que cumprirei a promessa
que fiz à Madona da igreja de Florença.
E agora, sumam todos de minha presença!  (os cavaleiros saem)

2º CORO (enquanto Raniero parte com a vela na mão):
– No dia seguinte, antes da madrugada,
parte Raniero em sua cavalgada.

RANIERO (cheiro de importância e orgulho):
– Ah, com o ouro que tenho, lá na beira do mar,
pagarei um navio para me levar.
Além disso, estou ricamente armado,
e minha espada vale mais que vinte cruzados.

ANJO DA LUZ:
– Oh, Raniero, nem queiras saber
o que te pode acontecer…

1º DEMÔNIO (caçoando):
– Avante, Raniero, anima-te a ir!

2º DEMÔNIO (com pouco caso):
– Ah, logo, logo ele vai desistir.

2º CORO (enquanto a cena se passa):
– Raniero cavalga. Lá vai galopando,
mas vem vindo o vento, começa a passar.

VENTO (dá voltas e tenta apagar a vela de Raniero):
– Vvvv… Vvvv… Voando e soprando
dou voltas e voltas e torno a soprar.

RANIERO:
– Com mil raios! Com isto eu não contava!
Contra o vento minha força não vale nada.
Terei de cavalgar bem mais lentamente.  (ele segue mais devagar)

VENTO:
– Vvvv… Vvvv…
Aqui estou, aqui estou! Vou soprando à tua frente!

RANIERO:
– Minha chama não pode se apagar jamais.
Para protegê-la,
terei de ir montado de frente para trás.  (ele monta de frente para trás)

1º CORO:
– Raniero cavalga. Vai bem calmamente,
mas cinco salteadores surgem de repente.

(Os 5 salteadores pulam para um canto da cena, com os 2 demônios atrás.)

1º SALTEADOR:
– Um homem sozinho… Vamos matá-lo a pancada.

2º SALTEADOR:
– Decerto leva ouro. Está ricamente armado.

3º SALTEADOR:
– Ele vai-se defender!

4º SALTEADOR:
– Somos cinco contra um. Só podemos vencer!

RANIERO:
– Ali estão, com ar suspeito, uns cinco sujeitinhos.
Mas outro dia eram dez e matei-os sozinho.

ANJO DA LUZ:
– Não tinhas, porém, uma vela na mão.

5º SALTEADOR:
– É agora! – Alto lá! Em guarda, cavaleiro!

RANIERO:
– Com mil raios! Só agora percebo a situação.
É na chama que tenho de pensar primeiro.
Não me posso defender dessa turba inimiga,
pois a luz se apagaria no auge da briga.
A luz me força à paz… Ah, ter que parlamentar
com vis salteadores, sem nem mesmo lutar!

1º SALTEADOR:
– Passa para cá o teu ouro! E passa o cavalo!

2º SALTEADOR:
– Passa a armadura! E passa essa espada!

1º DEMÔNIO (no ouvido de Raniero):
– Joga fora a vela!

2º DEMÔNIO (no ouvido de Raniero):
– Mata-os a pancada!

RANIERO:
– Ouvi, salteadores de beira de estrada!
Para mim seria fácil vos moer de pancada.
Armado como estou, não há quem me vença.
Mas fiz uma promessa à Madona de Florença
e, por isso, vos dou tudo, com uma condição:
respeitai a vela acesa que levo na mão.

ANJO DA LUZ:
– Raniero, esta vitória que aqui conquistaste
foi bem maior que as outras das guerras em que andaste,
porque foi a ti mesmo que dominaste!

3º SALTEADOR (para os outros):
– Nunca vi um cavaleiro agir tão tolamente.
Conseguimos tanto e tão facilmente…

4º SALTEADOR (para Raniero):
– Ficam elas por elas. Podes levar a vela;
mas passa para cá o ouro, o cavalo,
a armadura e a espada!    (Raniero entrega tudo)

5º SALTEADOR:
– Toma esta velha capa. Não preciso mais dela.
Vai andando, peregrino, e cuidado com a vela!       (Os 5 saem.)

1º CORO:
– Despojado de tudo, Raniero põe-se a andar.
Sem ouro, não há navio que o queira levar.
Por terras inimigas ele vai caminhar.
Mas mesmo assim não se deixa desanimar.

2º CORO (enquanto surge o pastor com cajado):
– Certa vez um pastor, cujo rebanho inteiro
fora dizimado por maus cavaleiros,
surgiu à sua frente munido de um cajado.

PASTOR (depois que o 1º demônio cochicha em seu ouvido):
– Lá vem um cão cristão. Hoje estarei vingado.
– Alto lá, defende-te, miserável inimigo!

2º DEMÔNIO:
– Raniero, defende-te!

ANJO DA LUZ:
– Olha a chama em perigo!

RANIERO (ao pastor):
– De um só golpe eu podia te derrubar…
Mas tuas pancadas terei de levar… (o pastor bate nele com o cajado)

PASTOR:
– Então, não te defendes? Mas, que é que se passa?

RANIERO:
– Que a chama não se apague! Seria essa a desgraça.

FRANCESCA (a um canto da cena, ajoelhada):
– É meio-dia agora. Que faz Raniero a esta hora?
– Vela por ele, ó anjo protetor!
Olha o amor que minha alma sente!
Leva-o a agir corretamente!

PASTOR (parando de bater a um toque do anjo):
– Algo me tocou. Não sei o que seria…
(a Raniero): – Por causa dessa luz tu até morrerias?

RANIERO:
– Homem, na verdade não há quem me vença.
mas devo levar esta luz até Florença.
Suporto hoje o que nunca pude suportar:
levar tanta pancada sem poder revidar.

1º CORO (enquanto Raniero caminha):
– Dia após dia, Raniero segue, a caminhar.
Sempre algum sofrimento o vem atormentar.
E, em dado momento de sua viagem,
procura abrigar-se em uma estalagem.

ESTALAJADEIRA (em cena, com as criadas, fala com elas):
– Já é noite. É hora de trancar o portão.

1ª CRIADA (espiando fora):
– Vem vindo um esfarrapado com uma vela na mão!

2ª CRIADA (espiando fora):
– Que procure outro abrigo. Aqui é que não!

ESTALAJADEIRA:
– Que estais conversando? Temos muito o que fazer!

1ª CRIADA:
– Há um homem lá fora.

ESTALAJADEIRA (afastando-a):
– Ora, deixa-me ver!

2ª CRIADA:
– É um tipo esfarrapado. Que se ajeite lá fora.

RANIERO (vindo à frente dos degraus do palco):
– Busco apenas pousada por umas poucas horas.
Estou muito cansado…

1ª CRIADA:
– Já está tudo ocupado!

ESTALAJADEIRA:
– Espera, menina! Se ele fosse realmente
um cavaleiro, eu lhe diria que seguisse em frente.
A este pobre, porém, ofereço pousada;
mas onde dormirá? A casa está lotada…

RANIERO (entra):
– Obrigado, senhora. Não preciso dormir,
mas apenas descansar antes de prosseguir.

ESTALAJADEIRA (mostra um monte de palha num canto):
– Descansa nesta palha. (às criadas): – Vamos! Temos trabalho.  (saem.)

RANIERO (senta-se e põe a vela no chão):
– Se eu tivesse chegado como um cavaleiro,
não seria hospedado pela estalajadeira.
Se alguém me chamasse de pobre antigamente,
eu o liquidaria imediatamente.
Bendita ajuda… É estranho como tudo muda…
Devo vigiar a chama. (ele se recosta) Estou tão cansado…
Mas não posso dormir. Preciso ter cuidado… (adormece)

(Os demônios estão ao lado do anjo, no fundo da cena.)

1º DEMÔNIO:
– Estou sendo traído, com esta chama brilhando,
já que, por causa dela, Raniero está mudando.

2º DEMÔNIO:
– E eu pensei que ela o escravizasse a mim.
Mas a coisa toda não está sendo assim.
E receio que ele se torne um novo homem
se essa luz não se apaga, se essa chama não some.

1º DEMÔNIO:
– Anda, vamos ver se acabamos com ela.

2º DEMÔNIO:
– Ele dormiu. Será fácil apagar a vela.

FRANCESCA (ajoelhada):
– A noite vem chegando.
Onde Raniero estará descansando?
– Vela por ele, ó anjo protetor!
Olha o amor que minha alma sente!
Leva-o a agir corretamente!

ANJO (a Raniero):
– Eu velo por ti.

1º DEMÔNIO:
– Ele pertence a mim.

2º DEMÔNIO:
– À chama desta vela darei já um fim.

(O 2º demônio corre e cochicha no ouvido da 2ª criada.)

ANJO:
– Eu vou transformar em bem o mal.

ESTALAJADEIRA (entra e diz às criadas):
– O pobre homem dormiu afinal,
em cima da palha. (vê a vela) Mas com uma chama tão perto!

2ª CRIADA:
– Vou apagar a vela.

1ª CRIADA:
– Oh, não, não! Decerto
é muito especial a chama desta vela,
pois ele viajou todo o tempo com ela.

ESTALAJADEIRA:
– No entanto, é preciso tirá-la daqui.
Dai-me a vela. Agora, podeis ir dormir.

(A 2ª criada lhe dá a vela, e todas saem.)

2º CORO:
– Raniero despertou assim que o sol surgiu
e fica em desespero porque a vela sumiu.

RANIERO (levanta-se):
– Minha luz, minha luz! Foi tudo para nada…
Fui um mau guardião para a chama sagrada.

2º DEMÔNIO:
– Alegra-te, Raniero! Já podes voltar
à guerra, às cruzadas, e mais fama ganhar!

1º DEMÔNIO:
– Terás com certeza glórias e riquezas!

RANIERO:
– Que estranho… A riqueza não me contenta mais…
E a glória da batalha não me satisfaz… (fica em dúvida)
Que nada! É melhor que me alegre. Afinal,
possuir um ducado não é assim tão mau.

ESTALAJADEIRA (entra):
– Já descansaste?

RANIERO:
– Sim, e é justo que agradeça
teres tirado a vela de cima da palha.
Creio que fizeste muito bem em apagá-la.

ESTALAJADEIRA (faz um sinal para a 1ª criada, que traz a vela acesa):
– Oh, não te preocupes. Conservei-a acesa,
pois achei que esta vela era muito importante,
já que tu a proteges desde terras distantes.

RANIERO:
– Ainda está acesa! Oh, que feliz momento!
Bem sei que ela ainda me trará sofrimento,
mas eu a amo mais que guerras ou riquezas.

(Estalajadeira e criadas saem.)

1º CORO:
– Mais dificuldade surgiu para Raniero.
Acabavam-se as velas, e ele, sem dinheiro.
E, para a viva chama poder conservar,
ao pobre Raniero só resta mendigar.

RANIERO:
– Ah, como é difícil o orgulho ser vencido…
Ter de pedir velas como um pobre mendigo…
(Bate à porta da 1ª mulher; o 2º demônio está atrás dela):
– Dá-me uma vela para a luz não morrer!

1ª MULHER:
– Ora, vagabundo, mal tenho o que comer…
Por que daria a vela? Ora, sai já daqui,
ou chamo os cachorros e os solto atrás de ti!

1º DEMÔNIO:
– Suportas a ofensa desta rude mulher?

RANIERO (o anjo estende a mão sobre ele):
– Eu não posso deixar esta chama morrer.
Vou bater n’outra porta. (bate) – Suplico uma vela
que mantenha viva esta chama tão bela.

2ª MULHER:
– Ó homem, eu te peço, acende com essa chama
o fogo que me falta nesta pobre cabana.
Não posso fazer pão. Meus filhos sentem fome.
Entra e acende o fogo para mim, bom homem.  (ele acende o fogo)
Muito obrigada. As velas que eu tenho aqui estão. (entrega-as)

RANIERO:
– Sou eu que te agradeço de todo o coração.

2º CORO (enquanto Raniero segue com a vela na mão):
– Raniero esqueceu sua brutalidade
e agora aprendeu a agir com bondade.
Assim, um herói n’outro herói se tornou,
por todos os flagelos que então enfrentou:
as chuvas, os ventos, pancadas sem defesa,
pobreza e desprezo, por uma vela acesa.
Finalmente, depois, como uma recompensa,
consegue certo dia chegar a Florença.

1º CORO (enquanto o 2º coro se transforma nos habitantes de Florença):
– Agora ele sente que pode afinal
acender com sua chama os círios do altar
da Santa Madona na grande catedral,
e assim sua promessa se cumprirá.
Mas chega tão magro, com a pele queimada,
com a roupa em farrapos, faminto e cansado…
E então – oh tristeza! – algo estranho acontece:
o povo de Florença não o reconhece!

(Os habitantes, junto com os demônios, o assaltam com pancadas, tentando apagar a vela.)

1º HABITANTE:
– É um louco de vela acesa na mão!

2º HABITANTE:
– Apagai-a! Apagai-a!

3º HABITANTE:
– Boa diversão!  (eles rodeiam Raniero)

RANIERO (defendendo a chama):
– Ah, poupai minha luz! É a chama sagrada!

4º HABITANTE:
– Um louco! Que a chama seja logo apagada! (eles sopram)

RANIERO (defendendo a chama):
– Vós não me reconheceis? Mas eu sou Raniero!

5º HABITANTE:
– Raniero?!! Raniero era um forte cavaleiro
de rica armadura, nas guerras treinado!

1º HABITANTE:
– E em belo cavalo viria montado;
mas nunca em farrapos e descalço no chão!

2º HABITANTE:
– É um louco! É um louco! Boa diversão!
Apagai essa vela que ele traz na mão!

1º CORO (enquanto Francesca atravessa a cena):
– Mas, nesse momento, Francesca passava
bem perto de onde Raniero se encontrava.
Nos olhos cansados seu olhar se prendeu,
e então seu bem-amado ela reconheceu.

FRANCESCA:
– Raniero!!

RANIERO:
– Francesca!!

FRANCESCA (aos habitantes):
– Para trás! Para trás!
Este aqui é Raniero. Deixai-o em paz!

3º HABITANTE (parando de atormentar Raniero):
– É mesmo Raniero? Ah, eu não posso crer!

4º HABITANTE (parando de atormentar):
– Mas Francesca o afirma, portanto deve ser.

5º HABITANTE:
– E a vela que ele traz, para que é, afinal?

RANIERO:
– Para ser transportada até a catedral.

(Todos seguem Raniero e Francesca até o fundo da cena, onde está o altar com os círios. Aparecem os dois nobres senhores.)

1º CORO (enquanto a cena se passa):
– E Raniero começa a contar sua viagem
e a promessa que fez, de vir iluminar
o altar da Madona com a chama sagrada
do sepulcro de Cristo, por anjos guardada.
E Raniero contou todo o grande perigo
que passou pelas terras de povo inimigo;
e como conseguiu, tanta dor suportando,
manter a vela acesa, brilhando, brilhando.
Os nobres senhores, de testa enrugada,
achavam que tudo era coisa inventada.

1º SENHOR (com o 2º demônio atrás dele):
– É muito difícil acreditar que alguém
tenha trazido a chama de Jerusalém.
Raniero nos mentiu.

FRANCESCA:
– Oh, não! Raniero tem
alma de cavaleiro. É um homem de bem.

2º SENHOR:
– Pois que ele chame alguém para testemunhar
e confirmar tudo o que acaba de contar.

RANIERO:
– Não tenho testemunhas…

HABITANTES (com o 1º demônio):
– Pois então vai embora,
impostor!

FRANCESCA:
– Oh, meu Deus, manda uma ajuda agora!

(O anjo dá um passo à frente e joga para trás o véu que lhe cobria o rosto; os demônios, encolhidos e de cabeça baixa, vão para junto dele.)

HABITANTES:
– Um anjo!!!

ANJO (mostrando os demônios):
– Cidadãos desta bela cidade,
estes testemunharam que tudo é verdade. (Os demônios se encolhem mais)
Viajaram os dois todo o tempo a seu lado.
Raniero nunca esteve desacompanhado.
(aos demônios):
– Falai, criaturas! Então, que luz é esta?

DEMÔNIOS:
– É a amaldiçoada chama sagrada.

ANJO:
– É a abençoada chama sagrada,
que com um leve sopro pode se apagar,
que fez o que ninguém consegue realizar:
o violento Raniero ela transformou,
e seus dois demônios ela já dominou.
(a Raniero):
– Agora, Raniero, acende os círios do altar!   (Raniero os acende)
(aos habitantes):
– Esta chama sagrada vós deveis guardar.

(O anjo cobre o rosto com o véu e sai levando os demônios.)

2º CORO (forma-se novamente):
– Acendeu-se no altar este fogo sagrado,
no qual o mundo inteiro será renovado.

FRANCESCA:
– Meu Raniero, e tu? Partirás novamente?

RANIERO:
– Não, querida Francesca. Eu fico para sempre.
E juntos guardaremos a chama sagrada,
a chama da bondade humana restaurada.

TODOS (saem, cantando):
“Somos peregrinos a peregrinar.
Fomos escolhidos para procurar
pelo mundo afora uma nova luz, uma nova luz.
A escuridão se iluminará.
Essa luz o Cristo acenderá.
O Cristo acenderá.”

 


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