João, o felizardo

 

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conto dos irmãos Grimm

tradução de Renate Kaufmann
revisão de Ruth Salles

João serviu por sete anos a seu patrão e depois lhe disse:

– Senhor, meu prazo terminou, e eu agora gostaria de voltar para a casa de minha mãe. Dai-me o meu salário.

O patrão respondeu:

– Tu me serviste fiel e honestamente; assim como foi o serviço, também deve ser o salário.
E deu-lhe uma peça de ouro que era do tamanho da cabeça de João. João tirou seu lenço do bolso, enrolou nele o ouro, colocou-o ao ombro e se pôs a caminho de casa. E ia ele assim andando, pondo sempre uma perna adiante da outra, quando surgiu a seus olhos um cavaleiro bem-disposto e alegre montado num cavalo cheio de vida, que vinha a trote.

– Ah! – disse João, bem alto – Que bela coisa é cavalgar! Vai-se sentado como numa cadeira, não se tropeça em nenhuma pedra, economiza-se o sapato e vai-se para frente sem nem saber como.

O cavaleiro, que o ouvira, parou e gritou:

– Eh, João! Por que andas a pé?

– Não há outro jeito – respondeu ele – pois tenho de carregar este bloco para casa. É certo que é de ouro, mas eu nem posso manter a cabeça reta e, além disso, ele me comprime o ombro.

– Sabes de uma coisa? – disse o cavaleiro – Façamos uma troca: eu te dou o meu cavalo, e tu me dás o teu bloco de ouro.

– Com todo o prazer, – disse João – mas eu vos previno que tereis de carregá-lo.

João ficou radiante de felicidade quando se viu em cima do cavalo e, livre e desimpedido, foi por ali afora. Depois de algum tempo, ocorreu-lhe que podia ir ainda mais depressa, e começou a estalar a língua e a gritar: “Upa, upa!”

O cavalo se lançou num trote mais forte, e João, antes que se apercebesse, foi jogado da sela e caiu num valo que separava os campos da estrada. O cavalo teria mesmo disparado se não fosse detido por um camponês, que vinha pelo caminho conduzindo à sua frente uma vaca. João juntou seus ossos e se pôs de novo em pé. Ele estava, porém, aborrecido e disse ao camponês:

– É uma brincadeira sem graça andar a cavalo, sobretudo montando um matungo como este, que nos sacode e derruba de modo a nos poder quebrar o pescoço; não monto mais, nem agora nem nunca. Por isso é que admiro a vossa vaca, que pode ser conduzida com sossego e que, além disso, dá-nos, seguramente, manteiga e queijo todo dia. Que não daria eu para ter uma vaca como esta!

– Ora, – disse o camponês – se te agrada tanto, eu bem que gostaria de trocar contigo a vaca pelo cavalo.

João concordou, radiante de alegria, e o camponês saltou sobre o cavalo e foi-se embora depressa.

João foi conduzindo sossegado a vaca à sua frente, pensando no bom negócio que fizera: “Vamos que eu tenha só um pedaço de pão (e isso não me faltará); então, sempre que eu desejar, posso comê-lo acrescentando manteiga e queijo. Se tenho sede, é só ordenhar minha vaca e beber o leite. Ó meu coração, que mais podes desejar?”

Chegando a uma estalagem, ele parou, comeu com grande alegria tudo o que trazia consigo, seu almoço e seu jantar todinho e, com suas últimas moedas, se fez servir de um copo de cerveja. Depois, continuou conduzindo sua vaca, sempre em direção à aldeia de sua mãe.

O calor se tornava cada vez mais abafado à medida que se aproximava o meio-dia, e João se achava numa charneca que ele ainda levaria uma hora para atravessar. Começou então a sentir muito calor e, de tanta sede, sua língua se colou no céu da boca. “Para isso há remédio”, pensou, “vou agora ordenhar minha vaca e me refrescar com seu leite”. Ele a amarrou numa árvore seca e, como não tinha balde, pegou seu boné de couro como vasilha; mas, apesar de seus esforços, não aparecia uma só gota de leite. E, como ele ordenhasse com muita falta de jeito, o impaciente animal acabou por lhe dar um tal coice na cabeça com uma das patas traseiras, que ele cambaleou e foi ao chão, ficando por algum tempo sem saber onde estava. Por sorte, vinha vindo pelo caminho um açougueiro, que levava um porquinho num carrinho de mão.

– Que artes são essas? – exclamou ele, ajudando o bom João a se levantar.

João contou o que se passara. O açougueiro lhe estendeu sua garrafa e disse:

– Toma um trago e restaura tuas forças. A vaca não quer mais dar leite, é velha; só serve como animal de tração e para o corte.

– Ora, ora… – disse João, alisando o cabelo – quem havia de pensar? Não há dúvida que é bom quando se pode abater um animal desses em casa; quanta carne não dá! Mas eu não faço caso de carne de vaca, não é bastante suculenta para mim. Ah, se eu tivesse um porquinho como este… Tem outro gosto e ainda dá salsichas.

– Ouve, João. – disse o açougueiro – Para te agradar, quero fazer uma troca e te deixar o porco no lugar da vaca.

– Deus vos pague pela vossa bondade – disse João. E, entregando-lhe a vaca, deixou que o outro tirasse o porquinho do carrinho e lhe pusesse na mão a corda que o atava.

João seguiu seu caminho pensando em como tudo corria conforme seus desejos; assim, se lhe ocorria um aborrecimento, imediatamente era remediado. Logo, juntou-se a ele um moço que trazia debaixo do braço um belo ganso branco. Eles se cumprimentaram, e João começou a falar de sua sorte e de como suas trocas lhe tinham sido sempre vantajosas. O moço contou que levava o ganso para uma festa de batizado.

– Segura-o um pouco, – continuou ele, pegando-o pelas asas – vê como é pesado; mas, também, esteve na engorda durante oito semanas. Quem o comer assado vai precisar enxugar a gordura dos dois cantos da boca.

– Sim, – disse João, e ergueu-o com uma das mãos – ele tem lá seu peso, mas meu porco também não é dos mais leves.

Entretanto, o moço olhava cautelosamente para todos os lados e ainda sacudia a cabeça.

– Escuta-me, – começou ele a dizer em seguida – há algo errado com teu porco. Na aldeia de onde vim, foi roubado um do chiqueiro do prefeito. Receio… receio que seja esse que levas pela mão. Já mandaram gente à sua procura, e seria um péssimo negócio se te apanhassem com ele. No mínimo te meteriam num escuro cárcere.

O bom João ficou com medo.

– Ai, meu Deus! – disse ele – Ajudai-me a sair desta dificuldade, já que conheceis melhor estas redondezas; levai meu porco e dai-me vosso ganso.

– Vou ter de correr algum risco, – respondeu o moço – mas não quero ser culpado pela tua desgraça.

Assim, tomou ele a corda pela mão e puxou depressa o porco para um atalho. O bom João, livre de suas preocupações, pôs-se então a caminho de sua aldeia natal, com o ganso debaixo do braço. “Se eu pensar bem”, disse ele falando consigo mesmo, “ainda saí ganhando com a troca: em primeiro lugar, um bom assado; depois, a quantidade de gordura que sobrar, ah… isso dará pão com gordura de ganso por três meses; e, finalmente, as lindas penas brancas com que vou encher meu travesseiro, sobre o qual dormirei sem precisar ser embalado. Que alegria terá minha mãe!”

Ao passar pelo último povoado, estava lá um amolador de tesouras com seu carrinho. Sua roda ronronava, e ele ainda cantava:

– Afio tesouras todo o tempo.
Rápido a roda eu movimento
e penduro a casaquinha conforme o vento.

João ficou parado olhando para ele e finalmente o interpelou:

– As coisas caminham bem para vós, pois estais a afiar tão alegremente.

– Sim, – respondeu o amolador – todo ofício tem moedas no fundo. Um bom amolador é um homem que, cada vez que mete a mão no bolso, encontra dinheiro. Mas, onde compraste esse lindo ganso?

– Eu não o comprei, apenas troquei pelo meu porco.

– E o porco?

– Esse eu obtive em troca de uma vaca.

– E a vaca?

– Recebi em troca de um cavalo.

– E o cavalo?

– Dei por ele um bloco de ouro do tamanho de minha cabeça.

– E o ouro?

– Ora, esse foi o meu salário por sete anos de serviço.

– Em qualquer situação tu te saíste muito bem. – disse o amolador – E agora, se conseguires ouvir as moedas tilintando no bolso ao te levantares, tua vida estará feita.

– E o que devo fazer para isso? – perguntou João.

– Terás de ser um amolador como eu; para tanto não é necessário mais do que uma pedra de amolar, o resto virá por si. Eu tenho uma, que na verdade está um pouco estragada, mas em compensação terás de dar por ela apenas o teu ganso. Estás de acordo?

– Ainda tendes de perguntar? – respondeu João – Serei o homem mais feliz sobre a face da terra; se eu tiver dinheiro toda vez que meter a mão no bolso, que mais posso desejar?

E passou para ele o ganso e recebeu a pedra de amolar.

– E agora – disse o amolador, e apanhou uma pedra comum, pesada, que estava a seu lado no chão – aqui tens mais uma ótima pedra sobre a qual pode-se bater bem e endireitar pregos velhos. Pega-a e guarda-a com cuidado.

João pegou a pedra e continuou a caminhar com seu coração cheio de alegria; seus olhos luziam de felicidade.

– Devo ter nascido empelicado. – exclamou – Tudo que desejo vem ao meu encontro como se eu fosse uma criança que nasce num domingo.

Entretanto, como estava a pé desde que raiara o dia, começou a ficar cansado; a fome também o atormentava, pois já havia comido todas as suas provisões de uma vez só, na alegria de ter negociado a vaca. Por fim, só com esforço é que prosseguia e necessitava parar a todo instante; além disso, as pedras lhe pesavam demais. Não pôde então deixar de pensar o quanto seria bom se já não precisasse mais carregá-las. Como um caracol, vagarosamente ele chegou até um poço e quis descansar e matar a sede com um gole de água fresca.

Porém, para não danificar as pedras ao se sentar, colocou-as cuidadosamente a seu lado, na beirada do poço. Em seguida, sentou-se e ia inclinar-se para beber quando, sem querer, esbarrou ligeiramente nelas, e ambas caíram n’água. João, vendo com seus próprios olhos as pedras irem ao fundo, pulou de alegria, ajoelhou-se e agradeceu a Deus, com lágrimas nos olhos, por lhe ter ainda concedido mais essa graça, de livrá-lo das pesadas pedras, sem que tivesse de que se recriminar, pois só elas lhe estavam estorvando.

– Não há homem algum debaixo do sol – exclamou ele – que seja tão afortunado quanto eu.

E então, despreocupado e livre de toda carga, ele deitou a correr, até que chegou de volta à casa e foi para junto de sua mãe.

 

 

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