Memórias de um burro

 

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peça de Ruth Salles

Esta peça é baseada no livro Memórias de um Burro, da Condessa de Ségur. A autora chamava-se em solteira Sophia Rostopchine, tendo nascido em 1799, na Rússia, em São Petersburgo. Era filha do governador de Moscou, que incendiou a cidade em 1812 para expulsar os franceses comandados por Napoleão Bonaparte. Caindo seu pai no desagrado do czar, a família mudou-se para a França. Sophia casou-se com o conde Eugène de Segür e teve 8 filhos. Aos 50 anos começou a escrever para seus netos.

Esta peça, apesar de baseada numa história passada na França do século XIX, com características do local e da época, foi transposta para o Brasil, com termos nossos, como cangalha, jacá e outros. Conservei, no entanto, o nome de Cadichon para o burro, por já ser tão conhecido pelos alunos que leram o livro. Deste, escolhi apenas alguns episódios, porque são muitos. Fiz a música em escala modal mixo-lídia. Se necessário, a professora de música deve mudar o tom e o andamento.

PERSONAGENS:
Coros 1 e 2 (todos podem fazer parte dos coros, e cada um se destaca quando for sua vez de atuar na frente, voltando depois aos coros)
Cadichon, o burrinho
Dona malvada
Menino ajudante
Cachorro
Jorge
Avó de Jorge
Seu Jesuíno
Tonico com seu pônei
Zeca também
Luiza também
Carmô também
Quatro pôneis acima
Tia Gertrudes
O Prefeito
Quatro burros da corrida (podem ser os pôneis com orelhas mais longas)
Juca
Joaninha
Seu pai
(na hora do canto, querendo, podem aparecer o tropeiro e outros burros e mulas, e a mula madrinha com campainha.)

 

Introdução

CORO 1 (junto com Cadichon, que fala na frente, com orelhas de burro, rabo e cangalha nas costas):
– O meu sinhôzinho Juca
é um dono sem igual,
mas um dia falou mal
dos burros e dos burricos.
Então, a ele eu dedico
estas MEMÓRIAS DE UM BURRO
escritas SÓ com meu ZURRO!
HIN-HON!

CORO 2 (junto com Cadichon):
– Saibam vocês muito bem
que o burro é um animal
que não tem nada de estúpido.
Ele é até bom e sábio
se o dono lhe trata bem.
Mas, quando lhe trata mal,
dá coices de todo lado
e joga o dono no chão.
Mas é amigo dedicado
de quem tem bom coração.

CADICHON (sozinho):
– Tive alguns donos malvados…

DOIS COROS:
– Coitado!

CADICHON:
– Mas enganei todos eles!
Pois eram apenas homens
e por isso não podiam
saber tanto quanto um burro!
Hin-hon!
Não se espantem com meu zurro!

DOIS COROS (cantam, enquanto Cadichon trota com a cangalha):
“Caçuá é um jacá
de cipó todo trançado.
Fica um de cada lado
na cangalha pendurado.
Leva frango pro mercado,
leva milho e bacorinho,
e o burrinho carregado
vai trotando de mansinho.
Poc-poc-poc…
Se os burros vão em tropa,
o tropeiro vai do lado,
chapelão de carnaúba,
alpercata bem calçada.
Quando a mula vai na frente
é chamada de madrinha.
Orienta toda a tropa,
bimbalhando a campainha.
Blim-blim-blim…”

Cena 1

A FUGA
DONA:
– Burro tonto, venha já!
– Menino, segure o burro! (o menino puxa Cadichon e o segura)
Ponha a carga no jacá. (o menino enche demais os jacás)

CADICHON (reclama do peso):
– Hin-hon!

DONA:
– Ui!
Não quero ouvir tanto zurro!
Pronto, já está carregado.
Vamos logo pro mercado. (Cadichon começa a dar coices)
Que é isso, burro tonto?
Dando coice, seu vadio?
Quer chicotada no lombo? (dá chicotadas, leva um coice e cai sentada)
Ai, ai, eu levei um tombo!
(Cadichon vai para a beira do rio e sacode a carga na água.)

MENINO (chamando a dona):
– Dona! Ele jogou a carga
todinha dentro do rio!

DONA (desesperada):
– Ai, meus ovos! Ai, meus frangos,
meu milho, meu bacorinho! (Cadichon foge.)
Menino, chame o cachorro
e mande o cachorro atrás!
Que morda a sua canela!
Esse burro é ruim demais!

CADICHON (já trotando dentro do rio):
– Hum… Quem vai por dentro d’água
os cães não farejam mais…

Cena 2

O PASSEIO ATÉ A PONTE
CORO 1 (enquanto Cadichon anda de lá para cá):
– Lá vai Cadichon sozinho e sem dono.
Acho que se sente ao abandono…

CORO 2:
– Tudo porque não quis ir ao mercado.

CADICHON (olha em volta):
– Fui teimoso e vadio e acabei chicoteado…
A seca está chegando, já posso sentir.
Não acho nem palha onde dormir.
Perdi os meus donos. Eles eram malvados!
(abaixa e levanta a cabeça)
Mas eu também fui malcriado.
Vejo ali um menino! Vou fazer-lhe um carinho.
Vou pousar em seu ombro o meu focinho.
(Cadichon se aproxima do menino e pousa a cabeça em seu ombro.)

JORGE (passa a mão em volta do pescoço de Cadichon e chama):
– Vovó! Vovó! Olhe aqui um burrinho!
É tão carinhoso e parece sozinho.

AVÓ (aproxima-se e olha Cadichon):
– Parece com fome e com sede, Jorge.
Está magrelo
Dê-lhe um pouco de feno e água da gamela.
(O menino obedece, e o burro come e bebe)

AVÓ:
– Experimente montar. (Jorge monta)
Olhe só como é manso.
Vá saber se seu dono está na vizinhança.

JORGE (vai montado em Cadichon e encontra seu Jesuíno):
– Seu Jesuíno! É seu este jumento?

SEU JESUÍNO:
– Não, meu filho.
Tenho visto este burrico sozinho há muito tempo.

JORGE (voltando):
– Vovó! Vovó! Ele não tem dono.
Vamos ficar com ele?

CADICHON:
– Hin-hon! Hin-hon!

VOVÓ:
– Claro! Não vou deixá-lo ao abandono.

JORGE:
– Então ele vai se chamar Cadichon!

AVÓ:
– Olhe, chame seus primos
e vão passear aí perto.
Eles têm uns pôneis que são bem espertos.

JORGE (chama):
– Zeca! Luíza! Carmô! Tonico!
Tragam seus pôneis! Eu ganhei um burrico!
Vamos passear!
(Os primos chegam montados em seus pôneis.)

CARMÔ:
– Mas, Zeca! Com este sol quente no céu?

ZECA:
– Ora, Carmô, é só pôr o chapéu.

TONICO:
– Olhem só que burro magro o Jorge
ganhou de presente!

LUIZA:
– E daí,Tonico? Não é por isso que ele não
vai com a gente.

TONICO:
– É, Luiza?
Mas garanto que meu pônei é o cavalinho mais valente.

JORGE:
– Não sei, não. Os burros são muito sabidos.

CADICHON (consigo mesmo):
– Ainda bem que me deram comida e bebida.
Minhas forças voltaram.
Já estou bem disposto.
Vou levar meu novo dono com muito gosto.
(todos vão andando)
Epa! Uma ponte! Acho que está rachada.
Vou correr e ficar na frente empacado
para proteger essa garotada.

JORGE:
– Vamos, Cadichon, é só passar na ponte.

CADICHON:
– Hin-hon! Hin-hon! Hin-hon!
(consigo mesmo) – Eu não vou deixar
que façam essa burrice.
Epa! Olhem só o que eu disse!
Xinguei meu próprio nome!
Isso não é digno de um burro,
é tontice de homem.

TONICO:
– Esse burro não é nada valente.
O meu pônei é. E é obediente.
Saia daí Cadichon! E me deixe passar!
O riacho está seco. Ninguém vai se molhar.

CADICHON:
– Hin-hon! (consigo mesmo) – Vou sair, mas
garanto que a ponte vai quebrar.
(Ele sai da frente.Tonico passa e a ponte se quebra. Ele e o pônei rolam no chão.)

TONICO:
– Ai, Zeca! Estou todo enlameado.

ZECA:
– Pegue minha mão. Seu pônei já está de pé.

CARMÔ:
– Pois é…
Foi por isso que Cadichon estava empacado.

JORGE:
– Ele sabia. Como é esperto o meu burro!

LUIZA:
– Nós é que não entendemos o seu zurro.
(eles andam de volta)

CORO 1 (a avó está de um lado esperando):
– Lá vem de volta a garotada.
A avó já estava preocupada.

CORO 2:
– E Cadichon?

CADICHON:
– Hin-hon, hin-hon!

CORO 2:
– Vem zurrando de satisfação.
porque Tonico o chamou de medroso…

CORO 1:
– Que teimoso!

CORO 2:
– … E o burro é que estava com a razão.

Cena 3

CONVERSA DO BURRO COM OS COROS
CADICHON (sempre se movimentando e fazendo gestos):
– Um dia me montou um menino malvado,
e eu fui muito chicoteado.

CORO 1:
– Pobre Cadichon!

CADICHON:
– Mas eu o sacudi para dentro do rio!

CORO 2:
– Isso não foi bom.

CADICHON:
– A água estava tão fria,
que ele pegou pneumonia.

CORO 2:
– Isso não foi nada bom.
C

ADICHON:
– Aí eu fiquei arrependido.

CORO 1:
– Ah, isso foi bom!

CADICHON:
– Mas, quando ele se curou
não quis nada comigo.

CORO 2:
– Isso não foi bom.

CADICHON:
– Mas um dia eu o salvei de um cachorro
raivoso, e ele ficou meu grande amigo!

COROS 1 E 2:
– Ah, isso foi muito, muito bom, Cadichon!

Cena 4

A CORRIDA DE BURROS
(Cadichon corre em volta do palco para indicar mudança de cena.)

CORO 1:
– Porque Cadichon está de novo ao abandono?
Para ele, Jorge foi um ótimo dono.

CORO 2:
– Mas se mudou com a avó
para uma cidade distante,
e o burro foi vendido para outro sitiante.
Em vez de cangalha com jacás dos lados,
ele tinha de puxar carroça para ir ao mercado.

CADICHON (andando meio desanimado):
– Uma carroça velha, com cargas pesadas…
Acho até que as rodas eram meio quadradas.
Quando havia jeito, mal o sol raiava,
eu roía a corda e escapava.

CORO 2:
– E o dono, o seu Janjão,
não se zangou com essa vadiação?

CADICHON:
– Ele ficou na maior braveza
com minha esperteza.
E o chicotinho em meu lombo cantou e cantou.
Então eu sumi dali, mas depois refleti.
Afinal um burro tem sempre
de levar alguém nas costas,
ou então os jacás, ou então puxar carroça.
Cada um tem alguma coisa a fazer na vida.
Seja fácil e pequena… difícil ou comprida…
Não vale a pena ficar solto no mato
mas passando fome.
Acho até que esqueci meu nome.

CORO 1:
– É Cadichon!

CORO 2:
– Sabe que vai haver uma corrida de burros na feira?
Mas você está magro.Vai ser uma canseira.

CADICHON:
– Nada disso! Esperem para ver
se eu vou ou não vou correr!
(Cadichon dá uma volta grande e encontra tia Gertrudes e os quatro amigos de Jorge.)

TIA GERTRUDES:
– Ah, se eu tivesse um burro na vida,
ele já estaria inscrito na corrida.

LUIZA:
– Olhe aí o Cadichon, o burrico do Jorge!
TONICO:
– Ih, como está magro. Esse não pode correr.

TIA GERTRUDES:
– E quais são as condições para concorrer?

TONICO:
– A senhora, tia Gertrudes?

TIA GERTRUDES:
– Eu, não, menino! Cadichon! Você não pensa direito?

ZECA:
– A senhora tem de dar uma moeda ao prefeito.

CARMÔ:
– E se quem ganhar for o seu burrico,
são suas as moedas de todos os inscritos.

TONICO:
– E mais um relógio de prata!

TIA GERTRUDES:
– Eu não tenho quase nada,Tonico…
mas vou dar uma moeda
e inscrever este burrico.
Aliás nunca tive um relógio qualquer,
quanto mais um de prata.
Se Cadichon quiser…

CADICHON:
– Hin-hon! Hin-hon!

LUIZA:
– Olhe só, tia Gertrudes, Cadichon quer correr.
Por isso é que ele zurrou agora.

TIA GERTRUDES:
– Vou correndo inscrever-me porque está na hora.
Tragam um pouco de aveia para ele comer antes de correr.
(Ela dá moeda ao prefeito, e os meninos alimentam Cadichon.)

CADICHON (consigo mesmo):
– Pobre tia Gertrudes.Vou entrar na corrida.
Quero ajudar alguém nesta vida,
mesmo que ganhe em troca apenas a aveia.

TIA GERTRUDES:
– Vamos, Cadichon, e tenha coragem!

CADICHON (consigo mesmo):
– Isso! Coragem, em vez de malandragem.
(coloca-se na fila de burros)

COROS 1 E 2 (enquanto os burros correm em volta do palco):
– Eh, Cadichon, será que você consegue
vencer o Trovão e aquele outro jegue,
e mais o Teimoso e mais o Mordedor?

CADICHON (quando Mordedor morde seu rabo):
– Hin-hon! Hin-hon!

TIA GERTRUDES:
– Isso não vale! Isso é ladroagem
só para ter alguma vantagem!

ZECA:
– É bem coisa do Mordedor.

TODOS CINCO:
– Viva! Cadichon é o vencedor!

PREFEITO:
– Quem é o dono do burro,
para receber o prêmio duplo,
o relógio e o dinheiro?

TONICO:
– Ninguém, seu prefeito.
Esse burrico simplesmente apareceu.

TIA GERTRUDES:
– Mas quem o inscreveu fui eu!
E paguei por isso.

CADICHON (consigo mesmo):
– Eu cuidarei disso. (pega a bolsa do dinheiro e o relógio com a boca e entrega à tia Gertrudes)

TIA GERTRUDES:
– Viva! Viva! Muito obrigada, Cadichon.
Quero que você ache um dono bem bom!
Eu não posso sustentar um burro,
mas gostei de ouvir o seu zurro.
Adeus!

CADICHON: – Hin-hon! (todos vão embora)
Todos foram embora…
Mas enfim fiz o bem para alguém
e sem nada ganhar.
A pobre tia Gertrudes agora vê as horas
e tem algum dinheiro para poder se alimentar.

JUCA (chegando ali com a irmã Joaninha e o pai):
– Olhe, Papai, um burro sozinho.

PAI:
– Parece que ele não tem dono, Juca.

JUCA:
– Ah, eu queria tanto ter um burrinho…

JOANINHA:
– Vamos levá-lo para casa, Paizinho?

PAI:
– Está bem. Monte nele, Juca. Monte,
Joaninha. (os dois montam)
Ele é mesmo manso. E vamos embora.

CADICHON:
– Hin-hon! (consigo mesmo):
– Ganhei novos donos em boa hora,
e me sinto tão bem… como sempre quis.
Vou ser o melhor burro de todo o país.

 

 

Fim

 

 

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