4 – O professor de classe

 

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A qualidade da relação entre professor e aluno

por Rubens Salles 

No ensino fundamental das escolas Waldorf adota-se o professor de classe, que acompanha a classe do 1º ao 8º ano e ministra as matérias principais (português, matemática, história etc) na primeira aula do dia, com duas horas de duração, todos os dias.

Estas matérias são ministradas em épocas, que duram de três a quatro semanas cada uma, em que o professor pode aprofundar o tema e enriquecer suas aulas com o apoio de atividades artísticas. As matérias complementares, como línguas, educação física, música etc, geralmente são ministradas por professores especialistas. O objetivo do professor de classe é formar seus alunos e não apenas ensinar as matérias de um determinado ano. Trata-se de um comprometimento. Ele passa a conhecer bem a família de cada aluno, sua história de vida, seus problemas e qualidades. E cada professor de classe tem um tutor, um professor com muita experiência, às vezes aposentado, que assiste suas aulas periodicamente e o orienta e ajuda quando necessário.

Assim, nas escolas Waldorf o ensino é protagonizado pelo professor, que o planeja e realiza. Livros didáticos são usados apenas para seu preparo e planejamento. Ele é livre para preparar suas aulas, escolher ou criar poemas, histórias, peças de teatro etc, e os alunos escrevem com muito capricho seus cadernos de época, pois tudo deve ser bonito. Com o uso adequado de sua voz o professor realiza a educação. Nenhum livro didático ou recurso técnico substitui a qualidade da relação humana entre um professor preparado, motivado e entusiasmado com seu trabalho, e seus alunos. Nenhum método educativo supera ou substitui a palavra falada que vai de um ser humano a outro.(1)

 

Professor com sua classe do 1° ao 8° ano

Nas escolas Waldorf, sempre que começa uma nova classe de primeiro ano, há uma cerimônia em que os pais levam seus filhos àquele que será seu professor e educador. Trabalhando todos os dias com seus alunos, o professor de classe tem condição de estabelecer com eles uma relação de confiança e alcançar uma autoridade natural, essencial para criar as melhores condições para a ação de educar.

A escola é um ambiente privilegiado para o desenvolvimento da criatividade, do senso estético, e de valores como responsabilidade, solidariedade, sociabilidade, tolerância, inclusão, justiça, democracia, diversidade, cidadania e sustentabilidade, entre outros. Mas uma influência positiva não acontece por acaso, e sim por uma ação consciente do formador. Um professor só ensina justiça, por exemplo, se for justo com seus alunos, só ensina solidariedade se for solidário, só ensina responsabilidade se for responsável, só entusiasma seus alunos a aprender se ensinar com entusiasmo. O professor Waldorf sabe que seu exemplo como ser humano faz parte do meio ambiente formador da criança, e assume esta responsabilidade. Toda criança precisa sentir que é importante para o seu professor.

Nas escolas convencionais brasileiras, as crianças têm um professor único para as disciplinas principais até o 5° ano, o qual, embora mude a cada ano, convive diariamente e cria um vínculo com as crianças. Segundo os dados do INEP/QEdu referentes à rede pública em 2016, a taxa de reprovação no 6º ano, que é quando os alunos deixam de ter um professor único e passam a ter um professor para cada matéria, foi o dobro da taxa de reprovação do 5º ano, chegando a 15,7% dos alunos, e a taxa de abandono no 6° ano foi 165% maior do que no 5° ano. Na escola Waldorf não existe reprovação, exceto em casos excepcionais, mas cito estes dados estatísticos nacionais porque corroboram a importância dos alunos terem um professor que seja uma referência para eles.(2)

Hoje, devido às mudanças no modelo de família e ao fato de grande parte dos pais e mães trabalharem fora, muitas crianças têm pouca dedicação de adultos no âmbito familiar, o que aumenta a importância social de um professor comprometido com a formação de seus alunos. Pesquisa realizada por 40 anos pela Fundação Van Leer (3) comprovaram que inúmeras crianças, apesar de expostas a experiências familiares muito negativas e desestruturantes, conseguiram não repetir estas vivências em sua vida adulta, pelo fato de terem tido pelo menos uma pessoa de referência, em quem confiavam, para recorrer nas horas difíceis. E esta pessoa de referência, muitas vezes não era alguém da família. Ute Craemer considera que essa pessoa de referência “deve existir também, por exemplo, nas creches, nos orfanatos e nas escolas, o que implica em organizar o trabalho nestas instituições de tal forma que uma pessoa acompanhe a criança o mais perto possível e por um tempo o mais longo possível”

Este protagonismo do professor não se desenvolve em escolas onde o ensino é baseado em programas impostos por uma autoridade, desenvolvidos fora da realidade da escola, da sala de aula e da convivência entre professor e alunos. O comprometimento do professor com seus alunos é um dos esteios da Pedagogia Waldorf, e favorece para que o professor atue sobre as relações e as atitudes dentro da classe e nas famílias. A partir desta postura acontece o ensino da convivência, que junto com o desenvolvimento do pensar, sentir e querer, princípios básicos da Pedagogia Waldorf, coincidem com os quatro pilares da educação contemporânea estabelecidos pela UNESCO em 1998, no Relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI – Educação: Um Tesouro a Descobrir, coordenado por Jacques Delors. São eles:

Aprender a ser (sentir – vida sensível)
Aprender a fazer (querer – vontade)
Aprender a conhecer (pensar – cognição)
Aprender a viver juntos (convivência – relações humanas).

Esta visão sobre a importância da humanização da educação é recorrente mesmo em autores contemporâneos que não fazem parte do movimento Waldorf. Conheça algumas opiniões:

Francisco Imbernón

“Atualmente considera-se o conhecimento tão importante quanto as atitudes, ou seja, tudo o que representa formar as atitudes. Para educar realmente na vida e para a vida, para essa vida diferente (plural, participativa, solidária, integradora…), e para superar desigualdades sociais, a instituição educativa deve superar definitivamente os enfoques tecnológicos, funcionalistas e burocratizantes, aproximando-se, ao contrário, de seu caráter mais relacional, mais dialógico, mais cultural-contextual e comunitário, em cujo âmbito adquire importância a relação que se estabelece entre todas as pessoas que trabalham dentro e fora da instituição. É nesse âmbito que se reflete o dinamismo social e cultural da instituição com e a serviço de toda a comunidade, certamente considerada de modo amplo […] A instituição que educa deve deixar de ser “um lugar” exclusivo em que se aprende apenas o básico e se reproduz o conhecimento dominante […] Deve ensinar, por exemplo, a complexidade de ser cidadão e as diversas instâncias em que se materializa: democrática, social, solidária, igualitária, intercultural e ambiental.”(4)

Maria Candida Moraes

”Um desafio fundamental da educação atual é como colaborar na construção de uma cidadania multicultural e intercultural a partir dos ambientes de aprendizagem, assim como o papel da mediação pedagógica para o desenvolvimento de uma consciência cidadã crítica, responsável e criativa […] A total ausência de valores internos está provocando sérias patologias sociais, como a sedução dos jovens pelas drogas, o aumento da corrupção, dos sequestros, da sonegação e da criminalidade em geral”.(5)

Saturnino De La Torre

”A inteligência emocional, e não a capacidade abstrata de raciocinar, é o que realmente determina os atos e decisões importantes da vida, assim como o êxito nas relações humanas e muitas vezes o êxito profissional […] deste modo, a dimensão emocional do ser humano, que há apenas duas décadas estava proscrita em muitas instituições educativas, emerge com valor próprio junto à experiência e à razão”.(6)

Edgar Morin

”A compreensão é a um só tempo meio e fim da comunicação humana. Entretanto, a educação para a compreensão está ausente do ensino. O planeta necessita, em todos os sentidos, de compreensão mútua. Considerando a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da compreensão pede a reforma das mentalidades. Esta deve ser a obra para a educação do futuro. A compreensão mútua entre os seres humanos, quer próximos, quer estranhos, é daqui para frente vital para que as relações humanas saiam de seu estado bárbaro de incompreensão.”(7)

Paulo Freire

“Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode-se dar alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar.”(8)

 

Estar à altura de atender a estes desafios exige do professor uma constante autoeducação. Peter Biekarck afirma que autoeducação implica no professor criar um ecossistema interno, saudável para a sua própria existência. E, quando este o cria, a criança que está diante dele percebe, e esse ecossistema a envolve e se torna também um patrimônio para ela. O professor passa a ficar mais plenamente diante das crianças e elas mais plenamente diante dele. Para educar, não basta conhecer técnicas, é essencial uma dedicação humanizadora. O autor afirma que “a indisciplina já vem como um efeito colateral da vida de hoje, porque não há um preparo do ambiente interno. Toda boa educação redunda do comprometimento sério e grato do ser humano se auto educar.” (9)

O professor Waldorf sabe que primeiro temos que educar a nós mesmos para depois podermos educar as crianças. É preciso criar um meio ambiente que favoreça uma harmonia mental e espiritual entre professor e alunos, que vai além das palavras e técnicas pedagógicas. A autoridade do professor depende da forma como ele “responde” às seguintes questões das crianças:

“Você realmente me vê?”
“Você pode me ajudar a realizar um encontro com o mundo?”

“Isso define a posição do professor e o tipo de relação do aluno com ele. A resposta a essas perguntas essenciais ocorre durante e através de um ensino que não vise apenas a mera transmissão de vivências mundanas, mas que permita que se vivencie o mundo. Se o professor passa por esta prova, ele é aceito pelos alunos como autoridade”.(10) Tobias Richter

 

Bibliografia

  1. CARLGREN, Frans e KLINGBORG, Arne. Educação para a Liberdade – a Pedagogia de Rudolf Steiner, 2006, p. 46 e 47.
  2. INEP / QEdu – http://www.qedu.org.br/brasil/taxas-rendimento
  3. Apud FRIEDMAN, Adriana e CRAEMER, Ute. (orgs). Caminhos para uma Aliança pela Infância, 2003, p. 69.
  4. IMBERNÓN, Francisco. Formação Docente e Profissional, 2006, p. 7.
  5. MORAES, Maria Candida. Complejidad y Mediación Pedagógica. Nuevas Perspectivas para la Educación Intercultural. 2008, p. 15.
  6. TORRE, Saturnino De La. Estrategias Didácticas Innovadoras y Creativas. 2008, p. 63.
  7. MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 2002, p. 17.
  8. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – saberes necessários à prática educativa. 2002, p. 16.
  9. BIEKARCK, Peter. Vídeo Coleção Grande Educadores. 2009.
  10. RICHTER, Tobias. Objetivo Pedagógico e Metas de Ensino de uma Escola Waldorf. 2002, p. 21.

 

 

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