O quarto rei

 

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peça de Ruth Salles

Peça baseada na segunda parte do “Livro dos Três Reis”, de Jakob Streit. É a lenda do rei que parava pelo caminho para ajudar toda gente e que, por isso, só conseguiu chegar até Jesus quando este morria na cruz. É uma peça de Páscoa, portanto.


PERSONAGENS

Coro que canta no início (podem ser as próprias personagens)
Tares (ourives)
Nasar (pastor)
Aquior (lavrador)
Talandro (príncipe)
Rei
4 Monges
3 Guerreiros
Dono de Talandro (quando este é escravo)
Peregrino
Pilatos
Povo
Voz de Jesus na Estrela
Narrador

Introdução

CORO (canta um hino ao sol; pode ser ampliado à vontade):
“Ó sol, que envias luz e vida à terra,
do alto dos rochedos da montanha
nós te saudamos!”

 

Cena 1

O ourives, à porta de sua tenda e diante de sua banca de ourives, trabalha em uma peça e conversa com o lavrador e com o pastor, que param ao passar.

TARES (ourives):
– Adeus, Nasar!
Já vais pastorear o teu rebanho?

NASAR (pastor):
– Sim, meu bom Tares.
Às clareiras da serra o acompanho.
E, enquanto pasta,
Olho as altas geleiras que desenham
os limites do montanhoso reino
em que vivemos.

TARES:
– Toma cuidado com despenhadeiros!
Circula a lenda de que lá no fundo
do abismo vive um monstro, uma serpente
enrolada à montanha, e sempre à espera
dos atrevidos loucos que pretendem
tentar descer.

AQUIOR (lavrador):
– Ninguém conhece
os vales onde os rios da montanha
vão desaguar. Dizem que só o rei
tem acesso aos segredos do caminho.
– Vamos, Nasar. Tu não irás sozinho.
É tempo de zelar pelo plantio
dos cereais. – Adeus, meu bom ourives!

TARES:
– Espera-me, Aquior! Também vos sigo.
Tenho encontrado pedras preciosas,
algumas vezes,
nas brechas entre as rochas. É bem perto
do penhasco do rei.

AQUIOR:
– Tanto mistério
cerca esse ponto da montanha… Dizem
que, em dado tempo, o rei sobe ao penhasco
e abre seu manto ao ar. E vem o vento
levá-lo para o vale. E, lá em baixo,
decidem juntos reis de vários povos
o destino de todos.

NASAR:
– Outro dia,
falaram-me de um jovem corajoso
que, ultimamente,
tem sido visto à beira do penhasco,
olhando pensativo para baixo.
Por que será? Tu sabes quem é ele?

AQUIOR:
– Sim, é Talandro,
o filho único de nosso rei.
Mas eu não sei
por que arrosta o perigo em tal penhasco,
ali… pensando… – Vamos, Tares!

TARES (que enfim se levanta): – Vamos!

 

Cena 2
Talandro à beira do penhasco real

TALANDRO:
– Oh, como é vasto o céu cheio de estrelas!
E este monte rochoso é tão estreito…
Ah, quem me dera viajar com os astros…
– Leva-me, estrela, na amplidão do espaço!
Leva-me até o vale lá embaixo!…
Eu já tentei acompanhar o rio,
mas os rochedos fecham-se em gargantas
intransponíveis. Que ansiedade sinto
e que cansaço estranho… Aqui, dormindo,
descansarei de ter sonhado tanto…

(Deita-se e adormece. Uma voz se faz ouvir de trás da cena. Ele acorda.)

VOZ de Jesus na Estrela:
– Talandroooo!…
Talandro!

TALANDRO (ergue-se e olha para o céu):
– Eis que ouço uma voz a me chamar.
Oh, céus, vejo uma Estrela que se inclina…
Nela brilha um semblante tão divino…
É como um sol o seu olhar!

VOZ:
– Talandro!
Vai, porque teu destino é caminhar!
Tu hás de me encontrar nas profundezas.
Põe-te a caminho!

TALANDRO:
– Que voz, que luz no céu, quanta beleza!
Que segredos divinos antevejo!
Oh, nunca, nunca mais esquecerei
aquele olhar de sol naquela Estrela…

Cena 3
O Conselho de sábios

(No palácio do rei. Este, seu filho e os quatro monges sábios se reúnem.)

1º MONGE:
– O Conselho de sábios se reúne!

2º MONGE (dirigindo-se ao rei):
– Majestade…

REI:
– Senhores, quais as novas?

2º MONGE:
– Acabam de chegar dois outros monges
dos nossos, que de sete em sete anos
secretamente descem para o vale,
dando os ensinamentos mais sagrados
ao povo das baixadas.
Nosso reino tem sido preservado
de todo mal, graças a seu exemplo.

REI (aos dois monges recém-chegados):
– Sede bem-vindos!
Vós chegastes mais cedo desta vez.
Tal rapidez se deve a boas novas?

3º MONGE (o mais velho):
– Oh, rei, quisera dar notícias boas…
Mas, chegando ao país do velho templo,
grassava lá feroz epidemia.
O seu rei, Baltasar, deixara o reino
um pouco antes, e de nada sabe.

4º MONGE (o mais moço):
– Ele seguira o rumo de uma Estrela
que o convidara a viajar. Então,
fomos cumprimentar o rei vizinho,
mas nem chegamos lá,
por causa da miséria que grassava
em consequência de uma grande seca.
O próximo país que procuramos,
estando infelizmente mergulhado
numa guerra civil, nos foi vedado.
Desistimos, então, e retornamos.

REI (ao filho):
– Ouviste, filho, a fala destes monges?
Há séculos os reis das redondezas
aguardam um sinal profetizado
sobre um caminho novo para os homens.
Mas bem vejo que deixarei a vida
sem abrir tal caminho para o povo.

TALANDRO:
– Meu pai, aqui há algo a se notar:
pois o primeiro rei, rei Baltasar,
viajou só depois que foi chamado
por uma Estrela. Então não te parece
ser a Estrela um sinal? Não tardes, pai!
Envia mensageiros que procurem
o mesmo rumo que esse rei tomou.

1º MONGE:
– Não! Seria imprudente tal medida.

2º MONGE:
– O rumo é incerto.

3º MONGE:
– E tantos, os perigos…

4º MONGE:
– Penso, porém, que um jovem talvez saiba,
melhor que nós, ouvir a voz tocante
de um mistério divino em nova forma.
Talandro pressentiu algo sagrado
na estranha Estrela e tem razão, talvez…

TALANDRO:
– Ó venerável pai, cede-me alguém
que me sirva de guia na descida!
Eu mesmo quero ir. Ó pai, permite!

1º MONGE:
– Jovem Talandro, correrás perigo!

2º MONGE:
– É impossível permitir tal coisa!

3º MONGE:
– Baltasar pode ter sido iludido
por fantasias vãs. E tu também,
Talandro. A ansiedade te confunde.

REI:
– Senhores, paz a todos. Podeis ir.
Deixai-me a sós com o príncipe. (os monges saem)
– Talandro, talvez eu reprimisse esse teu ímpeto
se não tivesse tido estranho sonho:
nele vi que três reis iam seguindo
o rumo de uma Estrela que passava
de leste para oeste.

TALANDRO:
– Sim, meu pai.
Vi a Estrela também, dias atrás,
do penhasco real. Tu não te lembras
do que te revelei sobre esse dia?

REI:
– Os sinais coincidem. Eu conheço
essa linguagem plena de mistério.
O chamado foi dirigido a ti.
Não te quero reter, querido filho.
Vai, Talandro! Serás o quarto rei
a viajar no rumo dessa Estrela.
E, conforme o costume, a ti transfiro
a dignidade de ser rei. Recebe-a! (põe uma tiara em Talandro)
E que o saber de teus antepassados
te ilumine e se renove em ti,
e tu serás a luz de nosso povo.
Leva contigo ouro e pedras raras. (entrega-lhe esses tesouros)
Vou ver os monges a te acompanharem.

 

Cena 4
Talandro no meio do caminho

(O tempo passou. Talandro está pobre e mal vestido. O 3º monge morrera na descida da montanha. O 4º monge, o mais moço, está muito doente.)

4º MONGE (recostado):
– Vai, Talandro! Vai, meu filho!
Não atrases teu caminho.
Tantas vezes já paraste…
com os pobres que amparaste,
com os doentes que trataste…
Tantos meses atrasaste…
Tudo foi tempo perdido!

TALANDRO (de joelhos a seu lado):
– Caro monge, estás doente.
Não te deixarei sozinho.
Decerto é um Rei clemente
quem vi na Estrela sagrada,
e portanto compreende
que tais motivos me atrasem.

4º MONGE:
– Ai de nós, que já perdemos
o nosso monge mais velho.
Tombou na profunda brecha
do alto despenhadeiro.
Mas… vai! Procura a Estrela!
Esquece que temos pressa?
O tempo passa, Talandro.

TALANDRO:
– Deixemos que o tempo passe.
Não te quero abandonar.
A luz da Estrela é divina
e nunca se apagará.

4º MONGE:
– Mas Talandro, o tempo passa.
Lembra as vezes que paraste
junto aos povos que ensinaste
a plantar, a irrigar…
Tuas pedras preciosas,
com todas elas compraste
mantimentos para os pobres.

TALANDRO:
– Pois precisavam de esmolas…

4º MONGE:
– Toda a riqueza paterna
tu foste distribuindo.

TALANDRO:
– Pois havia tal miséria,
doença e dor nos seguindo…
Descansa, monge, descansa.

4º MONGE:
– Mas o tempo vai fugindo…

TALANDRO:
– O sol desceu no horizonte.
Descansa, meu bom amigo.

 

Cena 5
Talandro prisioneiro

(Talandro no país das guerras, sozinho, esfarrapado, aproxima-se, sem saber, do campo inimigo. Ao canto, alguns guerreiros.)

TALANDRO (fala consigo mesmo):
– Meu amigo não é mais deste mundo…
Há muito que estou só. Neste deserto,
de leste a oeste vou seguindo o rumo
do Rei da Estrela. Cada vez mais perto.
Por entre cataclismos, fome, pranto,
foi forçoso parar de vez em quando.
Lembra-me a gruta em que dormi um dia,
numa noite de inverno escura e fria.
Nela sonhei chegar em terra estranha;
na terra estranha, campos e palácios;
e por fim a visão de uma cabana.
A luz da estrela iluminava ao alto.
Dentro do lar humilde, vi que estavam
uma criança e a mãe que a segurava.
Diante da criança vi três reis
que tão solenemente a veneravam.
Sonhei que eu mesmo desejei entrar,
mas parei junto à porta que se abria,
porque nenhuma joia eu possuía,
nenhuma pedra rara a ofertar.
Senti que a criancinha era algum Rei,
e uma estranha alegria me inundava.
Mas eu, empobrecido, sem ter nada,
não ousei penetrar naquela casa.
E voltei para a noite. E despertei.
Pensando nesse sonho longamente,
percebi que jamais alcançaria
os três reis viajando à minha frente.
Nunca mais me apressei. E, a cada dia,
era um a sofrer, outro chorando,
e pelo meu caminho fui parando.
E hoje, aqui perdido neste campo
infestado de lutas e guerrilhas,
dos feridos que caem vou cuidando
e consolo os que vão perder a vida.

1º GUERREIRO:
– Alto! Que faz aqui este mendigo?

TALANDRO:
– Ó céus, este é o reduto do inimigo!

2º GUERREIRO (agarrando Talandro pelo braço):
– Silêncio! Agora és nosso prisioneiro!

3º GUERREIRO (empurrando-o):
– Vamos levar-te ao chefe. Vai primeiro!

TALANDRO:
– Deixai-me antes beber um gole d’água,
senhores. Há uma fonte ali no vale.

(Vão caminhando e maltratando Talandro.)

1º GUERREIRO:
– Tens sede? Bebe um pouco de água suja!
Vês teu retrato nessa poça escura?

TALANDRO (caindo diante da poça, tem uma visão):
– Oh, céus, eu vejo um rio de água pura,
e de pé nesse rio vejo um Homem…
Há uma pomba da maior alvura
pairando sobre Ele… E uma luz
desce do céu, clareia-lhe a cabeça…
A sua face… é a que vi na Estrela!
Eis os olhos de sol que havia nela! (Talandro cai desmaiado.)

2º GUERREIRO (espeta-o com a lança):
– Sangra de todo lado o prisioneiro.

3º GUERREIRO (rindo):
– Sangra de tanto que foi espetado.
Mas o chefe, assim mesmo, com certeza,
vai decidir vendê-lo como escravo.

Cena 6
Talandro, o bom pastor

(Campo, propriedade do dono de Talandro. Talandro está sentado a um canto, apoiado em seu cajado, descansando. Do outro lado, seu dono e um peregrino.)

DONO (ao peregrino):
– Agrada-me o pobre escravo…
Não é tão jovem, nem forte,
mas sabe cuidar do gado.
As ovelhas sempre ouvem
o seu mais simples chamado,
e, quando uma delas some,
só descansa após achá-la.
Um dia atirou-se ao rio,
salvou meu filho das águas.
Falou de um país distante,
a leste, onde ele morava.
É um bom pastor, que tange
as ovelhas tresmalhadas.
Mas… que contas, peregrino,
lá das terras de onde vens?

(À medida que o peregrino fala, Talandro se levanta e vai-se aproximando.)

PEREGRINO:
– Passei por Jerusalém,
onde há um Homem divino
que faz milagres com as mãos!
Tantos doentes curava…
E o cego que ele tocava
recuperava a visão.
O pão se multiplicava
à sua simples palavra.
E, até a uns que morreram,
a vida restituía.
Creem alguns que ele seja
o verdadeiro Messias!
Ele mesmo diz: “Eu sou
a luz do mundo que brilha
nas trevas.”

DONO (ao peregrino):
– Que maravilha!
(ao pastor que se aproximou):
– Que queres tu, ó pastor?

TALANDRO:
– Tu prometeste, senhor,
atender-me algum pedido,
depois que salvei teu filho.
Nada quis até agora.
Nada pedi. Hoje imploro.
Permite pôr-me a caminho
dessa terra mencionada,
pois vendo o Homem divino
termino minha jornada.

DONO:
– Tu cumpriste teus deveres
melhor que todos, pastor.
Vai! És livre. Tu mereces.

TALANDRO:
– Que tua vida, senhor,
se cubra de grandes bênçãos!
Alegria e gratidão,
são esses os sentimentos
que levo no coração.
Adeus a ambos!
(vai saindo, apoiado em seu cajado)

DONO e PEREGRINO: – Adeus!

Cena 7
Talandro encontra o Rei da estrela

(Em Jerusalém. O povo de braço estendido e punho fechado, grita em resposta às palavras de Pilatos. Talandro vem chegando do lado oposto e vê Jesus como que por trás da cena.)

PILATOS:
– Como costume da Páscoa,
que preso quereis que eu solte?

POVO:
– Barrabás! Sim! Barrabás!

PILATOS:
– E que farei de Jesus,
ou Cristo, como o chamais?

POVO:
– Crucifica-o! Crucifica-o!

TALANDRO (fala consigo mesmo):
– O homem de mãos atadas…
que luz irradia dele!
Sua face… seu olhar…
É ele! É o Rei da Estrela!
Vão matá-lo?! Não, não podem!
Não podem! Que lhes direi?
(ao povo):
– Oh, não mateis esse Homem!
Ele é o verdadeiro Rei!
O Rei dos Céus, meus amigos!
Não mateis! Deixai-o vivo!

(O povo grita e avança sobre Talandro, que cai. Todos o rodeiam, como se o espancassem, e depois saem. A cena pode escurecer e ser tocado um tema musical durante algum tempo. Quando a música pára, Talandro volta a si, caminha semimorto, cambaleando, e enxerga as cruzes, que estão fora da cena.)

TALANDRO:
– Onde está? Onde o levaram?
Morro… e não posso salvá-lo.
Três cruzes lá na colina!…
Sobre a cruz central, a Estrela…
Tão intensamente brilha…
É Ele, oh céus, sim, é Ele!

(Talandro vai lendo devagar, e depois cai como que aos pés da cruz.)

TALANDRO:
– Jesus… o Rei… dos Judeus… (ele cai)

VOZ de Jesus (vindo de fora da cena; pode ser falada pelo coro):
– Eis que chegas, meu irmão.
Teus caminhos são os meus.

TALANDRO:
– Ah, o rubi… que meu pai,
o rubi,… que o pai me deu,
era rubro como o sangue
que desce da cruz ao chão.
Mas agora nada mais,
nada mais tenho de meu…
Que te posso dar?

VOZ de Jesus:
– Irmão,
Teus caminhos são os meus.
Que sejas santificado!

TALANDRO:
– Oh… Que paz, junto ao Messias…
E chego ao fim dos meus dias… (morre)

VOZ de Jesus:
– Meu Pai, está consumado!… (a cena escurece)

 

Cena Final

NARRADOR (pode ser o coro, ou todos os personagens, à frente da cena):
– Cinquenta dias mais tarde,
o fogo do divino Espírito Santo desceu sobre os discípulos
e acendeu em seus corações a força de partir,
de sair pelo mundo proclamando a boa nova.
E deu-se que um deles, que era chamado Tomé,
foi para o Oriente.
E lhe tendo sido indicado
o caminho que levava a um reino afastado, no alto das montanhas,
subiu até lá.
E muitos o ouviram
e construíram pontes sobre os despenhadeiros
e desceram ao vale,
saudando como irmãos os povos das baixadas.

 

 

F I M

 

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