O Sábio Tchu-Hi

 

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peça de Detlev Putzar

tradução de Martha Maria Walsberg
revisão e adaptação Maria Barbara Trommer e Ruth Salles

NOTA

Esta peça foi preparada para o 8º ano de Annelvira Gabarra, em 1994. Como estava muito longa, procurei agora concentrá-la um pouco mais. Há duas canções que precisariam de uma melodia oriental.

Na primeira versão, Annelvira e eu deixamos a seguinte observação:

É interessante notar que no livro I Ching, traduzido por Richard Wilhelm e prefaciado por Carl Jung, lemos que essa sabedoria, de no mínimo cinco mil anos, foi compilada há três mil e cem anos pelos sábios Wen e Chou, sendo este um dos fundadores da dinastia Chou. Tal sabedoria chamava-se originalmente I, e só mais tarde recebeu as denominações de Chou I e de I Ching. Somos então levados a indagar, entre maravilhados e surpresos: Teria o termo Chou I (nome do sábio e da sabedoria compilada) algo a ver com o sábio Tchu-hi desta peça, o qual também compilou as regras e os costumes antigos para o povo chinês? Deixamos a resposta para quem a souber dar.

Ruth Salles

 

PERSONAGENS

Tchu-hi, um sábio das montanhas
Argun, príncipe foragido (que também é o Máscara)
Cocachin, princesa que ama Argun
Kublai-Khan, imperador de Catai (China)
Siur-Kokteni, imperatriz de Catai
Achmak, ministro de Kublai
Uladai, criado de Achmak
Três lacaios de Achmak (no fim fazem parte do Povo)
Toman Van-co, general
Han-li, filha de Van-co
I-Yin, coronel
Cenco, capitão, que ama Han-li
Chi-lung-chi, prestimosa mulher junto ao portal
Três damas da corte
Dois mendigos
Dois ou mais soldados
Chefe de cerimônias
Três venezianos: Matteo, Nicolo e Marco Polo
Sete Pessoas do Povo
Servos

 

LOCAL: China (Catai), século XIII

NOTA: China é então chamada Catai, ou Império do Meio, porque os chineses achavam que seu império era o centro de toda a terra.

 

CENA 1
Região montanhosa um tanto fantástica

Ruído de tambores, fanfarras, passos, luta.
Tchu-hi, Povo; I-Yin, Toman Van-co, Cenco; Achmak, Uladai e dois soldados; Cocachin.

TCHU-HI: – Ó montanhas silenciosas, até aqui, num recanto tão tranquilo, chega o som das fanfarras de guerra? (O povo se aproxima.) – Quem o chamou, ó Povo do Meio?

POVO: – Quem nos chamou foi a miséria.

TCHU-HI: – De que miséria posso livrá-los? Quando Achmak, o primeiro ministro e conselheiro do imperador, mandou queimar os rolos que escrevi para todos, contendo as leis, os costumes e as virtudes dos antepassados do Império do Meio, do Império do Centro do Mundo, nenhum de vocês se rebelou.

POVO: – Faltou-nos coragem, ó sábio Tchu-hi! Mas agora sofremos tanto! Realize um sacrifício junto conosco! Torne os deuses misericordiosos!

TCHU-HI: – Pois então vão na frente e armem os altares. Preparem o sacrifício! (O povo se retira.)

TCHU-HI: – Ah… Que posso eu fazer? Nestes tempos, a força de um sábio é diminuta, porque o mal é grande.

(O sábio sai também. Aparece primeiro, I-Yin, que espera um pouco pelos outros.)

I-YIN (vendo chegar Toman Van-co): – Meu general Toman Van-co!

TOMAN VAN-CO: – Ora, é meu bom amigo o coronel I-Yin!

I-YIN: – Oh, general! Cumprimos as ordens de Kublai-Khan e levamos a caçada até os fins do reino, mas não achamos o príncipe Argun.

TOMAN VAN-CO: – Pelo jeito, o fio de nossas espadas não é para ele.

I-YIN: – Seu rastro se perde nas montanhas. Só os deuses saberão se ainda vive.

TOMAN VAN-CO: – Então Argun escapou! O reino de seu pai foi esmagado por Kublai Khan, que não aceitou que o próprio irmão não se ajoelhasse a seus pés. E agora o príncipe está condenado à morte!

I-YIN: – Confesso que não me atraiu a glória de perseguidor.

TOMAN VAN-CO: – Só que você se esqueceu da segunda parte da ordem: Não descansar enquanto o príncipe não estiver algemado. Se você chegar de mãos vazias, receberá o machado do juiz no pescoço.

I-YIN: – Pois eu acho que cumpri as ordens do imperador, e se meu general ordenar regressamos já.

TOMAN VAN-CO: – Hum… As ordens do imperador… Em nome dele, quem manda agora é seu primeiro conselheiro, o sarraceno Achmak. Que você pensa disso, capitão Cenco?

CENCO: – O país foi subjugado. O jovem príncipe está ameaçado pelo cárcere ou pela espada. Ele tem de se manter escondido.

I-YIN: – O senhor está vendo, meu general, que o capitão pensa como eu, embora eu sinta que a sombra de Achmak pode cair sobre mim. Seu poder é quase igual ao do imperador.

TOMAN VAN-CO: – Como amigo, não ouvi o que você disse. Como comandante, devo aconselhá-lo: Tenha cuidado! O sarraceno manda, e acho que só um milagre mudará esta situação.

I-YIN: – A ação decidida de muitos conseguirá o milagre; cada um, sozinho, é apenas um caniço que qualquer vento curva. Mas já se fala por aí de uma irmandade consagrada a essa meta.

CENCO: – Que é acabar com o domínio estrangeiro.

TOMAN VAN-CO: – Vou fingir que não ouvi isso, senão terei de entregar os dois ao juiz e à corda do carrasco.

CENCO: – Ora, general! Uma corda para mim vai acabar estrangulando seus netos.

TOMAN VAN-CO: – Do que é que você está falando?

CENCO: – De sua filha.

TOMAN VAN-CO: – Han-li? Deixe minha filha fora disso. Você fala demais, e há ouvidos atentos. Você vai escrever para Han-li?

CENCO: – Vou, sim, com certeza. Por que?

TOMAN VAN-CO: – Escreva de tal modo que o que for escrito tenha um sentido especial para mim. Han-li não deve perceber nada. E, se você encontrar os sinais combinados na carta que ela lhe mandar em resposta, regresse então para Cambaluc.

CENCO: – Mas estou achando que só meu general sabe onde buscar a tal irmandade que quer livrar o país do domínio estrangeiro.

TOMAN VAN-CO: – Basta, Cenco! Vá logo! (olha ao longe) Ora! A guarda deixou passar alguém livremente. Quem será?

(Achmak vem chegando com seus dois soldados.)

CENCO (à parte): – Falou no diabo, apareceu o rabo. É o sarraceno.

TOMAN VAN-CO (inclina-se diante de Achmak): – Deus no céu, e o Khan na terra. Saudações a seu dignitário.

ACHMAK: – Ah, eis aí Toman Van-co, o general supremo.

I-YIN: – Senhor, o costume desta terra é devolver a saudação recebida.

ACHMAK (com desprezo): – Conheço esses costumes camponeses.

CENCO: – Sim, o Khan respeita quem dá esses exemplos ao povo.

ACHMAK: – Esses exemplos não servem de nada. O povo é ruim e precisa de castigos e proibições.

TOMAN VAN-CO: – Com a bondade unida à justiça, o povo e o país prosperam.

ACHMAK : – Ora, justiça! Fiquei sabendo que vocês leem as antigas escrituras do velho sábio Tchu-hi, que estão agora proibidas e mandei queimar. Mas o Khan os estima e não vai censurá-los por isso. Com certeza vocês conseguiram aprisionar Argun, o príncipe, ou conseguiram tirar-lhe o peso terrestre, o que seria melhor ainda.

I-YIN: – Apesar de uma cavalgada sem descanso, Argun nos escapou.

ACHMAK: – Em nome de Kublai Khan, eu ordenei: vivo ou morto! Você falhou. (aos dois soldados que estão entrando): – Soldados! Prendam-no! Tirem suas insígnias!

TOMAN VAN-CO (aos dois soldados): – I-Yin, seu superior, cumpriu lealmente sua obrigação. Argun, o príncipe, fugiu para fora de Catai, para fora do território do Império do Meio. Não foi ordenado que se levasse a guerra para além das fronteiras.

ACHMAK: – Que fronteiras? O reino do Grande Khan não tem fronteiras. Sua palavra é lei no universo todo. E eu sou a boca do imperador, com a qual ele lhes fala. E eu ordeno que I-Yin seja preso! (Os soldados amarram as mãos de I-Yin e saem arrastando-o para fora) Quero Argun aqui! O povo continua acreditando que ele voltará como rei! Tragam seu cadáver!

TOMAN VAN-CO: – Sim, e a benevolência de Kublai Khan dará a coroa ao grande Achmak, que vai crescer acima da sombra do trono.

ACHMAK: – Você me adula com uma coroa, Toman Van-co. Mas brilhar aos pés do trono é suficiente para mim. Você já está partindo?

TOMAN VAN-CO: – De volta a Cambaluc, para cumprir as tarefas antigas (sai com Cenco).

ACHMAK (para Uladai, seu servo): – Então, Uladai, que novas você me traz do grande astrólogo, que interpreta o futuro para o Khan?

ULADAI: – Ele disse que Saturno rege o caminho terreno do Filho do Céu…

ACHMAK: – Será que o caminho do imperador é regido por outros poderes? (para si mesmo) “Saturno” será o nome do meu planeta? (para Uladai) – E que mais? Ele não disse quando secará a fonte de vida do imperador?

ULADAI: – Ele disse que na festa da primavera, quando o dia e a noite se equilibram, será revelado o par de regentes.

ACHMAK: – Um par de regentes? Dois novos regentes? E Kublai Khan, ele sobreviverá?

ULADAI: – O estudioso das estrelas disse: “Na festa da primavera, ele renunciará ao trono.” Não disse que o perderá por morte.

ACHMAK: – E como o astrólogo interpretou o par de regentes?

ULADAI: – Ele falou de um par de regentes que vive incógnito na corte.

ACHMAK (para si mesmo): – Eu, incógnito? Vou desmascarar essa farsa, e do par ficará apenas um!

(Barulho em volta. Os soldados trazem um prisioneiro.)

ACHMAK: – Que está havendo? Quem está fazendo tanto barulho?

ULADAI: – Um prisioneiro! Mas é uma jovem!

ACHMAK (vendo que ela se defende): – Que há com esta selvagem?

1º SOLDADO: – Quando penetramos na floresta, ela fugiu ao ouvir nosso chamado. Achamos que era Argun e a perseguimos. Pensamos que prendíamos o príncipe incólume e poupamos sua vida, mas depois vimos que se tratava de uma jovem!

ACHMAK: – Mas quem é ela?

2º SOLDADO: – Ela se feriu e, em sua dor, chamava por Argun, o nome do muito procurado. Mas não revelou seu próprio nome.

ACHMAK (à jovem): – Quem é você, animal selvagem das estepes? Que significam esses trajes masculinos?

COCACHIN: – Fui caçada como uma assassina em minha própria terra, que não está em guerra com a sua. Esta montanha é morada dos deuses do meu povo, onde Tchu-hi faz os sacrifícios nos altares a céu aberto. Quem é o senhor, que ultrapassa as fronteiras de meu país e me persegue?

ACHMAK: – As perguntas faço eu, o conselheiro do Khan! Onde nossos rebanhos pastam, a terra é nossa! Você falou em Tchu-hi! Saiba que os rolos que ele escreveu eu reduzi a pó, a fim de que o povo venere apenas o imperador. Você escondeu Argun. A vida dele está amaldiçoada, assim como a sua, se não revelar onde ele está!

COCACHIN: – É a vida dele que importa, não a minha. Eu sou Cocachin, e de Argun nada direi.

1º SOLDADO: – Senhor, ela perdeu este colar ao cair. Pendurada nele há uma pequena peça de prata imitando a lua, e também um dente de lobo.

ULADAI (à parte a Achmak): – Se ela quer sacrificar-se por Argun, deve ser noiva dele. Devolva-lhe a lua e o dente de lobo, talvez ele use outro igual.

ACHMAK (ao soldado): – Devolva seu colar e pode levá-la para Cambaluc.

(Os soldados saem com Cocachin, por onde saíram com I-Yin.)

ACHMAK (a Uladai): – Vou dá-la de presente ao imperador. A notícia correrá depressa, e logo Argun vai saber e virá cair em nossas mãos a fim de libertá-la.

(Barulho de tambor. Povo surgindo de todos os lados.)

ACHMAK (assustado): – Quem são vocês e o que querem?

POVO: – Somos o povo de Catai e queremos, através do senhor, pedir ao imperador os frutos de nosso trabalho.

ACHMAK: – Os frutos de seu trabalho? (ri) Tudo que a terra dá pertence ao imperador. Com que direito o povo se atreve a julgar como ele distribui seus bens?

POVO: – Com o direito de viver.

ACHMAK: – Morte e vida estão nas mãos do regente, mas os funcionários vão estudar suas queixas. Podem ir.

(O povo, recuando, sai.)

ACHMAK: – Eles ameaçam a mim, Achmak?… Para onde foram?

ULADAI: – Quem, senhor?

ACHMAK: – Quem? Você pergunta quem? Você não viu ninguém?

ULADAI: – Não vi ninguém.

ACHMAK: – Como não viu? Ora essa! (pensa um pouco) Soube que o Imperador vai mandar o veneziano Marco Polo para inspecionar as províncias. Mas é preciso que o povo saiba quem manda aqui. (Os dois saem.)

 

CENA 2
Mesma região

Argun; Tchu-hi.

ARGUN (olhando para trás como um fugitivo): – Será que minha fuga chegou ao fim? Por que eu, Argun, tenho que vagar sem rumo? E Cocachin não estava no esconderijo. Será que foi aniquilada pelo inimigo ou tragada pelos abismos da montanha? Será que não vou mais vê-la e minha felicidade não se cumprirá? Revelem-me, ó deuses que regem o curso das estrelas!

(Entra o velho Tchu-hi.)

ARGUN: – Ó velho, que espírito seu corpo abriga?

TCHU-HI: – O espírito que, quando deve falar, também usa o silêncio.

ARGUN: – Assim fala a sabedoria.

TCHU-HI: – Assim falam os anos, Argun.

ARGUN: – O senhor sabe quem eu sou?

TCHU-HI: – Eu sei quem você foi.

ARGUN: – É verdade, meu bom velho. O Argun que existiu não existe mais. Ele perdeu seu país e perdeu Cocachin, a flor das montanhas.

TCHU-HI: – Você pode conquistar algo novo. Deve esquecer o que um dia foi.

ARGUN: – Esquecer quem amei? Esquecer que meu pai, por não querer prestar homenagem ao irmão invencível, roubou assim o futuro de seu próprio filho?

TCHU-HI: – O filho não deve acusar o pai. Ele viveu a vida dele. Inicie você mesmo a sua. Você nasceu príncipe e deve conquistar seu reino.

ARGUN: – Ó velho, não caçoe de mim. Estou sendo perseguido e quem quiser me abrigar corre perigo.

TCHU-HI: – Quem tem amor e coragem segue seu caminho sem se assustar com ameaças. Esse é um homem.

ARGUN: – Mas tenho de vagar solitário, pois quem me reconhecer pode me matar e ser recompensado por isso. Preciso fugir dos homens, e isso não é um bom destino.

TCHU-HI: – Quem não quer ser reconhecido se abriga em segurança no palácio do Khan.

ARGUN: – Os anos dão sabedoria, mas também dão extravagância… Devo então ir então para Cambaluc, para o palácio do Khan, que me tomou tudo, que me fez mendigo? Com que disfarce eu estaria seguro?

TCHU-HI: – Eu lhe empresto minhas vestes. Não há disfarce melhor que de um sábio.

ARGUN: – Suas vestes não farão de mim um sábio; mas esse desafio me levanta o ânimo!

TCHU-HI: – Há algo que você precisa saber. Se você usar este áspero envoltório de um eremita, não vai mais se lembrar de Argun. Um sono profundo levará embora seu Passado.

ARGUN (consigo mesmo): – Se perdi Cocachin, que era dona de meu coração, posso perder também o meu Passado. (a Tchu-hi): – Aceito, velho. Empreste-me sua vestimenta. Quando é que o senhor vai pedi-la de volta?

TCHU-HI: – Quando, em Cambaluc, o imperador jejuar e alimentar os pobres, suplicar por chuva para os frutos da terra e, com sua própria mão, arar três sulcos sob a lua da primavera. Que cordão é esse em seu pescoço?

ARGUN: – Nele estão pendurados um dente de fera e a lua de prata da estepe. Há algum tempo, salvei uma jovem que se defendia de uma loba com uma coragem desesperada. Ela dividiu comigo seu colar da lua de prata, e em cada um penduramos também um dente da loba. Era Cocachin essa jovem. Ah, será que ainda está viva?

TCHU-HI: – Ela agora foi adotada como filha pelo imperador. Guardarei comigo seu colar. Com ele, você poderá ser descoberto. (Põe sua veste em Argun e tira seu colar.)

ARGUN (desapontado): – Não sinto diferença, meu bom velho. Mas… sinto-me leve e me expandindo. Que amplidão azul… (ele adormece).

TCHU-HI: – Dormiu. De manhã, você acordará e irá para Cambaluc. Se alguém perguntar por Argun, diga apenas “Ele vive”. Aquele a quem o céu quer salvar, o céu protege. Na festa da primavera tomarei de volta minha roupa. (Tchu-hi sai.)

 

CENA 3
Na sala da corte no palácio

O trono do imperador e o da imperatriz. Um gongo.
Ao fundo, duas sentinelas, o servo que toca o gongo; outros servos; na frente, a imperatriz Siur-Kokteni, Cocachin, três damas da corte com harpas; Mestre de Cerimônias; Kublai Khan; Argun.

SIUR-KOKTENI: – Cocachin, querida, como você está pensativa. Você agora é uma filha querida da casa imperial. Você se lembra de quando os soldados a trouxeram?

COCACHIN: – Sim, meu coração bate com medo até hoje.

SIUR-KOKTENI: – Sua chegada nos foi anunciada! O imperador viu-a e lhe deu a liberdade, e me deu uma filha para cuidar. Mas você nem sorri para sua boa sorte.

COCACHIN: – É a saudade da estepe onde nasci, mas agradeço a sua benevolência.

SIUR-KOKTENI: – Eu também nasci na estepe, conheço seu chamado. Quando Kublai-Khan venceu o reino de Catai, todas as regiões passaram ao seu domínio. Porém o novo senhor foi conquistado pelo povo subjugado, que tinha escrita, livros e sabedoria. Kublai-Khan não é mais mongol. Ele é imperador de uma nova dinastia.

COCACHIN: – A lua de prata sobre a estepe chama por mim… (canta ao som das harpas):
“Minha tenda era redonda,
tinha paredes de feltro.
Muitas vezes carne crua
me servia de alimento.
Bebia o leite das éguas,
agora estou tão distante…
Se eu fosse a grou amarela,
voava lá num instante.”

SIUR-KOKTENI: – Não há sol que faça com que você esqueça a lua de prata?

COCACHIN: – Em Cambaluc, o sol é o imperador Kublai Khan.

SIUR-KOKTENI: – Existe alguém que está perto do sol e que me pediu para falar com você. É Achmak. Ele quer você como esposa. Apesar de ser sarraceno, nenhum mortal, depois do Khan, é mais poderoso que ele.

COCACHIN: – A senhora fala de alguém que me faz medo.

SIUR-KOKTENI: – Você foi sua presa de guerra, e ele a deu de presente ao Khan como filha. Ele a corteja como princesa, e também porque o casamento o ligará à casa imperial como filho. O imperador apoia esse pedido e o anunciará na festa da primavera.

COCACHIN: – É a ganância pelo poder que faz Achmak querer casar-se comigo. Foi para isso que o Khan me tomou como filha? Para me entregar a Achmak, o tenebroso? Não há nada que afaste de mim essa desgraça?

SIUR-KOKTENI: – Cocachin, não exijo que você dê esperanças a ele. E confesso que um outro seria mais digno do trono e de você.

(O som de um gongo anuncia a aproximação do imperador.)

MESTRE DE CERIMÔNIAS (proclama): – Pelo deus eterno, que o nome do grande Khan seja louvado.

(Os presentes se curvam, e Kublai-Khan vai para o trono.)

KUBLAI-KHAN: – Shang-ti, o mais alto dos deuses, dá e toma! As estrelas anunciam que meu reinado chegará ao fim. Algo novo quer surgir, gerações com outras ideias se preparam para o futuro.

SIUR-KOKTENI: – Embora eu não tenha gerado um filho, ainda me resta a esperança de ver a regência continuar pela antiga linhagem.

KUBLAI-KHAN: – Sua esperança chama-se Argun, e, pelo que Toman Van-co relatou, a perseguição forçou-o para as altas cordilheiras, onde nada existe para comer e para beber. Quando a lua se arredondar, vou dizer ao povo qual o novo regente. Você sabe quem me agrada.

SIUR-KOKTENI: – Toda a corte sabe que o imperador favorece Achmak. Mas, ouça: nas margens do rio, lá onde os carpinteiros fazem barcos para a competição na festa da primavera, há um homem que carrega fardos, e ele diz que Argun está vivo.

KUBLAI-KHAN: – Argun, vivo?

SIUR-KOKTENI: – Sim. Mandei que trouxessem do rio o carregador de fardos até o palácio. Se ele não perder a coragem diante do trono do imperador, deverá dizer: “Ele vive”.

KUBLAI-KHAN: – Pois quero interpelá-lo. E, se ele não assumir o que disse ao povo, serei para ele um juiz severo. Que ele entre!

(Argun é trazido para dentro.)

COCACHIN (para si mesma): – Grande Senhor dos céus! É Argun!

ARGUN (ajoelha-se) – Longa vida ao imperador!

KUBLAI-KHAN: – Aproxime-se e diga quem é você!

ARGUN: – Senhor, sou um carregador, mas antes fui pastor de cavalos.

KUBLAI-KHAN: – Foi nesses afazeres inferiores que você viu Argun, o príncipe?

ARGUN: – Jamais o vi. Seu rosto me é desconhecido.

COCACHIN (consigo mesma): – Ele jamais o viu, e é ele mesmo!

KUBLAI-KHAN: – Se você nunca o viu, como proclama atrevidamente: “Ele vive”?

ARGUN: – O bom velho me disse que respondesse isso a quem perguntasse.

KUBLAI-KHAN: – E quem é esse velho? Onde meus emissários poderão encontrá-lo para trazê-lo aqui, a fim de que a dor da incerteza se transforme em lamento ou alegria?

ARGUN: – Eu o conheci lá onde os altos rochedos seguram a abóbada celeste, mas a clareza da lembrança me foge…

KUBLAI-KHAN: – Cocachin, ó linda filha, você está pálida! (para Argun): – Eu sei quem é esse velho. É Tchu-hi. O altíssimo deus Shang-ti permitiu que ele ditasse regras para a terra. E logo o povo obedeceu a ele e cuidou com devoção dos rolos onde ele escrevia para a melhoria da humanidade. Mas Achmak, meu conselheiro, queimou aqueles rolos. (Aos servos): – Procurem Tchu-hi! Que meus melhores emissários o convidem cordialmente para que venha à minha presença! (a Argun): – Você ficará aqui em penhor. Há muito tempo que o jardineiro me aborrece pedindo um ajudante. Cocachin poderá conduzi-lo até ele. (à Imperatriz): – O latino Marco Polo já foi anunciado?

SIUR-KOKTENI: – Ainda não temos notícias, mas ele está sendo esperado.

KUBLAI-KHAN: – Investiguem seu paradeiro. Quero sacrificar no altar do seu deus, que você chama de Cristo.

COCACHIN (ergue-se para acompanhar Argun e fala consigo mesma): – Ele olha para mim como se nunca me tivesse visto e, no entanto, é Argun!

ARGUN: – Linda filha do Imperador, eu devo ir servir o jardineiro. Leve-me até ele. (Os dois vão saindo)

COCACHIN: – Cocachin é como me chamam. Esse nome não lhe diz nada?

ARGUN: – Sim. Em todos os mercados se ouve dizer que o Imperador a tomou como filha. Agora vejo que é verdade… E você é bonita.

COCACHIN: – E seu nome, qual é?

ARGUN: – Chamam-me de “Olá!” ou “Você aí!”, e ocasionalmente de “Imbecil” ou coisa pior.

COCACHIN: – E sempre foi assim?

ARGUN: – Desde que consigo me lembrar.

COCACHIN: – E seu pai? Ele nunca o chamava de Argun?

ARGUN: – A mim? Meu pai? Nenhum pai me chamava.

COCACHIN (consigo mesma): – Seu coração ardente se apagou. É ele e, no entanto, não é ele.

ARGUN: – Linda filha do Imperador, não desperdice seu esforço com um nome. Se eu me chamasse Wang ou Li, que se ganharia com isso? Você ama as flores porque lhes foram dados nomes?

COCACHIN (consigo mesma): – A cada palavra eu o reconheço. (a Argun): – Vamos, então, “você aí”! (Saem os dois.)

SIUR-KOKTENI (a seus servos): – Mandem vir minha liteira e levem-me até o mar. Quero que minha filha seja disfarçadamente vigiada. E, se possível, impeçam que Achmak fale com ela. Os lacaios dele também, pois pior que o próprio diabo são os diabos ensinados.

(Saem os servos levando a Imperatriz na liteira. Todos saem.)

 

(continua)

 

Havendo interesse em representar a peça, enviaremos o texto completo em PDF. A escola deve solicitar pelo email: [email protected]
Favor informar no pedido o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.

 

 

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