Pele de bicho

 

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Conto dos irmãos Grimm, traduzido por Ruth Salles e Renate Kaufmann

Era uma vez um rei que tinha uma esposa com cabelos dourados, e ela era tão linda que já não se encontrava outra igual sobre a face da terra. Aconteceu que ela estava enferma e, quando sentiu que morreria logo, chamou o rei e disse:

– Se, após minha morte, quiseres casar novamente, não tomes esposa que não seja tão bela quanto eu e que não tenha este cabelo dourado como o meu; isso tu tens de me prometer.

Depois que o rei fez a promessa, ela fechou os olhos e morreu.

Por muito tempo, o rei ficou inconsolável e nem pensou em tomar uma segunda esposa. Finalmente, disseram seus conselheiros:

– Não há outra coisa a fazer, o rei precisa casar de novo para que tenhamos uma rainha.

Então, foram mandados emissários por toda parte, para que procurassem uma noiva que se igualasse em beleza à falecida rainha. Mas não havia outra no mundo inteiro e, mesmo que houvesse, não teria aqueles cabelos dourados. Portanto os emissários voltaram sem que tivessem conseguido resolver o caso.

Ora, tinha o rei uma filha, que era tão linda quanto a mãe e que tinha também aqueles cabelos dourados. Assim que ela cresceu, o rei olhou para ela e viu que ela se assemelhava, em tudo, à sua falecida esposa, e sentiu repentinamente um forte amor por ela. Disse ele então a seus conselheiros:

– Quero casar com minha filha – pois ela é o retrato de minha falecida esposa – já que não consigo mesmo achar noiva alguma que se lhe assemelhe.

Ao ouvirem isso, os conselheiros se assustaram e disseram:

– Deus proibiu que um pai despose sua filha; desse pecado nenhum bem poderá provir e, além do mais, o reino será arrastado à destruição.

A filha assustou-se muito mais ainda quando soube da decisão de seu pai, mas tinha esperanças de que ele viesse a desistir de suas intenções. Assim, ela lhe disse:

– Antes que eu realize vosso desejo, preciso primeiro de três vestidos: um dourado como o sol, um prateado como a lua e um brilhante como as estrelas; além disso, desejo um manto composto de mil e uma espécies de peles, e cada animal de vosso reino deve dar um pedaço da sua.

Ela pensou, porém: “Isso é completamente impossível de conseguir, e assim desvio meu pai de seus maus pensamentos.”

No entanto, o rei não desistiu, e as donzelas mais prendadas de seu reino tiveram de tecer os três vestidos: um dourado como sol, um prateado como a lua e um brilhante como as estrelas; e seus caçadores tiveram de capturar todos os animais de todo o reino e tirar um pedaço de sua pele; foi feito um manto de mil e uma espécies de peles. Finalmente, quanto tudo estava pronto, o rei fez com que lhe trouxessem o manto, estendeu-o diante dela e disse:

– Amanhã serão as bodas.

A filha do rei, vendo então que não havia mais esperança de mover o coração de seu pai, tomou a resolução de fugir. Durante a noite, quando todos dormiam, ela se levantou e levou, de suas preciosidades, três coisas: um anel de ouro, uma pequenina roca de ouro e um pequeno fuso de ouro; os três vestidos, de sol, de lua e de estrelas, ela colocou dentro da casca de uma noz, vestiu o manto de todos os tipos de peles e sujou as mãos e o rosto de fuligem. Então, ela se encomendou a Deus e foi embora, e andou a noite inteira até que se viu dentro de uma grande floresta. E, como estava cansada, sentou-se dentro de uma árvore oca e adormeceu.

O sol se levantou, e ela continuou dormindo, e dormia ainda quando o dia já ia alto. Ora, aconteceu que o rei a quem esta floresta pertencia foi caçar dentro dela. Quando seus cachorros chegaram perto da árvore, começaram a farejar, a rodeá-la e a latir. Disse o rei aos caçadores:

– Vede que caça se esconde ali.

Os caçadores seguiram sua ordem e, ao voltarem, disseram-lhe:

– Na árvore oca está deitado um animal singular, como nunca vimos antes; Em sua pele há mil espécies de pelos. Ele esta deitado e dorme.

Disse o rei:

– Vede se é possível apanhá-lo vivo, depois amarrai-o à carruagem e levai-o junto.

Quando os caçadores tocaram na menina, ela acordou muito assustada e exclamou:

– Eu sou uma pobre criança abandonada por pai e mãe; tende piedade de mim e levai-me convosco.

Então, eles disseram:

– Pele-de-Bicho, tu serves para a cozinha, vem conosco; tu podes ajuntar a cinza do fogão.

Então, sentaram-na na carruagem e levaram-na ao castelo real. Lá, indicaram-lhe um cantinho que havia debaixo da escada, onde nenhum raio de sol penetrava, e disseram:

– Pelezinha-de-Bicho, aí podes morar e dormir.

Então, ela foi mandada para a cozinha, carregava lenha e água, atiçava o fogo, depenava as aves, escolhia verduras, ajuntava a cinza e executava todos os trabalhos inferiores.

Ali viveu Pele-de-Bicho por muito tempo, bem miseravelmente. Oh, linda princesinha, que será de ti?

Uma vez, porém, aconteceu que houve uma festa no castelo, e então ela disse ao cozinheiro:

– Posso ir um pouco lá em cima espiar? Ficarei do lado de fora da porta.

Respondeu o cozinheiro:

– Está bem. Vai, mas daqui a meia hora deves estar de volta para ajuntar as cinzas.

Então, ela tomou sua lamparina, foi ao seu cantinho debaixo da escada, tirou a capa de pele, lavou a fuligem do rosto e das mãos, de modo que toda a sua beleza surgiu à luz do dia. Depois, abriu a noz e tirou de dentro o vestido que brilhava como o sol. Feito isto, subiu para a festa, e todos lhe abriram caminho; pois ninguém a conhecia, e não pensaram outra coisa senão que ela fosse uma princesa real. O rei veio ao seu encontro e, estendendo-lhe a mão, dançou com ela e pensou consigo mesmo: “Meus olhos ainda não viram nenhuma donzela assim tão linda”.

Quando a dança chegou ao fim, ela fez uma reverência e, como o rei olhasse para trás, ela desapareceu e ninguém sabia para onde. Os guardas que ficavam diante do castelo foram chamados e interrogados, mas ninguém a vira.

Ela, porém, tinha corrido para o seu cantinho, tirado depressa o vestido e sujado de preto as mãos e o rosto, e já havia posto a capa de pele e era de novo a Pele-de-Bicho.

Quando chegou à cozinha para executar seu trabalho e quis ajuntar as cinzas, o cozinheiro disse:

– Deixa isso para amanhã e faze-me a sopa do rei; eu também quero ir um pouquinho lá em cima espiar, mas não me deixes cair cabelo dentro da sopa, senão para o futuro não receberás mais o que comer.

Então, o cozinheiro saiu, e Pele-de-Bicho cozinhou a sopa do rei e fez a melhor sopa de pão que sabia fazer; quando esta já estava pronta, ela foi buscar em seu cantinho o anel de ouro e o colocou na terrina na qual ia ser servida a sopa.

Terminado o baile, o rei mandou que lhe trouxessem a sopa, tomou-a e gostou tanto dela que pensou nunca ter tomado sopa tão boa. Quando, porém, chegou ao fundo da terrina, viu um anel de ouro e não podia compreender como ele havia caído ali. Então, ordenou que o cozinheiro viesse à sua presença. O cozinheiro assustou-se ao ouvir a ordem e disse para Pele-de-Bicho:

– Decerto deixaste cair um cabelo na sopa. Se for verdade, levarás uma surra.

Quando ele chegou na presença do rei, este perguntou quem fizera a sopa. Respondeu o cozinheiro:

– Fui eu.

O rei, porém, disse:

– Isso não é verdade; pois foi feita de outra maneira e muito melhor do que costumava ser.

Respondeu o cozinheiro:

– Devo confessar que não fui eu quem a cozinhou, mas sim Pele-de-Bicho.

Disse o rei:

– Vai e faze-a subir.

Quando Pele-de-Bicho chegou, perguntou o rei:

– Quem és tu?

– Sou uma pobre criança que não tem nem pai nem mãe.

Perguntou ainda o rei:

– Para que estás tu servindo em meu castelo?

Ela respondeu:

– Não sirvo para nada senão para que me atirem as botas na cabeça. Perguntou ele ainda:

– De onde te veio o anel que estava na sopa?

Ela respondeu:

– Do anel nada sei.

Assim, o rei não conseguiu saber nada e teve de mandá-la de volta.

Depois de algum tempo, houve de novo uma festa, e Pele-de-Bicho pediu ao cozinheiro, como da outra vez, licença para poder espiar.

– Sim, mas volta dentro de meia hora e faz para o rei a sopa de pão que ele tomou com tanto gosto.

Correu ela então até o seu cantinho, lavou-se depressa, tirou da noz o vestido prateado como a lua e o vestiu. Em seguida, subiu e parecia uma princesa.

O rei foi ao seu encontro e se alegrou por tornar a vê-la e, como naquele momento começasse a dança, eles dançaram juntos. Porém, quando a dança terminou, ela desapareceu de novo tão depressa que o rei nem pôde perceber para onde ela ia.

Ela correu para o seu cantinho, transformou-se de novo em Pele-de-Bicho e voltou à cozinha para fazer a sopa de pão. Enquanto o cozinheiro estava lá em cima, ela foi buscar a roca de ouro e a colocou na terrina, de maneira que a sopa fosse posta por cima. Esta, em seguida, foi levada ao rei, que a tomou e a achou tão gostosa como da outra vez, e fez vir o cozinheiro, o qual teve também desta vez de confessar que Pele-de-Bicho é que fizera a sopa. Pele-de-Bicho veio novamente à presença do rei, mas respondeu que só servia para que lhe atirassem as botas na cabeça e que não sabia absolutamente nada sobre a pequena roca de ouro.

Quando, pela terceira vez, o rei deu uma festa, tudo aconteceu exatamente como das outras vezes. O cozinheiro, porém, disse:

– Tu és uma bruxa, Pelezinha-de-Bicho, e pões sempre alguma coisa na sopa; é por isso que ela fica tão boa e agrada mais ao rei do que aquela que eu faço.

Mas tanto ela pediu, que ele a deixou ir lá em cima por um tempo determinado.

Então ela pôs o vestido que brilhava como as estrelas e, com ele, entrou no salão.

Novamente o rei dançou com a linda donzela e achou que ela nunca estivera tão bela. Ordenou ele que a dança durasse bastante tempo e, enquanto dançavam, pôs em seu dedo, sem que ela percebesse, o anel de ouro. Quando a dança chegou ao fim, ele quis segurar a donzela pelas mãos; ela, porém, desvencilhou-se dele e correu tão depressa no meio da multidão que desapareceu de sua vista.

Ela se dirigiu, o mais rápido que pôde, ao seu cantinho embaixo da escada, mas como se havia demorado muito tempo e até mais que meia hora, não pôde tirar o lindo vestido e apenas jogou sobre si o manto de pele; com a pressa, também não pôde sujar-se bastante de fuligem, de modo que um dedo permaneceu branco.

Pele-de-Bicho correu logo à cozinha, fez a sopa de pão para o rei e, enquanto o cozinheiro estava ausente, colocou dentro o fuso de ouro. O rei, ao achar o fuso no fundo da terrina mandou chamar Pele-de-Bicho, e logo viu o dedo branco e o anel que ele lhe havia posto durante a dança. Pegou, então, sua mão e segurou-a firmemente; e, quando ela quis soltar-se para fugir, o manto de pele se abriu um pouco e o brilho do vestido de estrelas apareceu. O rei agarrou o manto e o puxou. No mesmo instante, apareceram os cabelos dourados, e lá estava ela com todo o seu esplendor, e não pôde esconder-se por mais tempo. Quando lavou as cinzas e a fuligem do rosto tornou-se mais bela que qualquer outra donzela jamais vista sobre a face da terra.

Disse, então, o rei:

– Tu és minha noiva bem amada, e jamais nos separaremos um do outro.

Em seguida, foram celebradas as bodas, e eles viveram felizes para sempre.

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