Sakuntala

 

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peça de Kalidasa (poeta hindu do século V ou VI)

traduzida e adaptada da versão inglesa de Monier Monier-Williams por Ruth Salles

“Queres as flores da primavera e os frutos do outono?
Queres a serenidade, o enlevo, o encantamento?
Queres, numa só palavra, o céu e a terra? Eu te direi: Sakuntala.”

Goethe

 

NOTA

Kalidasa, o mais bem dotado dos escritores do período clássico da Índia, tornou-se célebre como poeta e como autor dramático, sendo “Sakuntala” considerada sua obra-prima. Essa peça foi traduzida para o inglês, pela primeira vez, pelo orientalista Sir William Jones e ganhou a profunda admiração de Goethe.
O teatro hindu em seu apogeu, entre os séculos IV e VIII, tinha sempre um fundo religioso. Os épicos sacros “Mahabhârata” e “Ramayana” eram as principais fontes de inspiração dos autores, e a figura do eremita era muito admirada. Esta peça se baseia justamente na lenda do mesmo nome, existente no primeiro desses épicos, que narra a história de Ducianta e Sakuntala, pais do futuro rei Bhârata.

Numa peça hindu, o rei sempre tem um “vidûshaka”, isto é, um alegre acompanhante, e um “vita”, digno conselheiro. Com exceção de algumas personagens, as mulheres sempre aparecem em grupo de duas: as duas amigas de Sakuntala, as duas jardineiras do palácio, as duas pajens do filho do rei. Na peça original, só as personagens mais nobres falam em sânscrito; as demais se exprimem em dialetos. Para simplificar, deixei poucos trechos em verso, que, no original eram privilégios de personagens masculinos.
A adaptação da tradução inglesa se baseou às vezes no conto “Sakuntala”, tal como foi narrado pelo professor João Baptista de Mello e Souza. Foi desse conto que adaptei os versos de uma Invocação a Shiva à melodia de uma antiquíssima oração brâmane ao deus Shiva colhida no sul da Índia.

Ruth Salles

 

PERSONAGENS

CORO de personagens fora da cena; introduz a peça com a Invocação a
Shiva.
DUCIANTA, rei descendente do rei Puru. Traz um grande arco.
O ARQUEIRO do rei. Carrega a aljava com as setas.
MATÁVIA, alegre amigo do rei.
RAIVATIKA, o guarda-portão.
BADRASENA, o comandante da guarda.
KARABHAKA, o mensageiro da rainha-mãe.
VATAIANA, velho camareiro do rei. Anda apoiado num bastão.
SOMARATA, o sacerdote do palácio real.
MITRAVÁSU, o chefe dos guardas.
SUCHAKA, 1º guarda.
JANUKA, 2º guarda.
CAVITRÁ, pescador. Traz uma flautinha.
KANVA, o sábio santo, chefe dos eremitas e pai adotivo de Sakuntala.
VELHO EREMITA.
SARAVATA, 1º discípulo (noviço).
HARITI, 2º discípulo (voz calma).
SARGARAVA, 3º discípulo (voz vibrante).
DURVASAS, o sábio irascível que lança a maldição.
KASSIAPÁ, pai dos homens e dos deuses, esposo de ADITI.
O COCHEIRO do carro do deus INDRA. Traz um véu que o torna invisível.
SAKUNTALA, filha adotiva de Kanva (sua mãe foi a ninfa MENAKA).
ANASSUÍA, amiga de Sakuntala.
PRIANVADÁ, amiga de Sakuntala.
GAUTAMI, superiora do eremitério.
DUAS JOVENS, enfeitadas de flores, que carregam o arco do rei.
AMBALIKA, 1ª jardineira do rei.
MADUKA, 2ª jardineira do rei.
SANUMATI, ninfa amiga de Sakuntala e de sua mãe Menaka. (Usa vestes vaporosas e um véu que a torna invisível.)
SUVRATA, 1ª pajem do menino Sarvadamana
DAMATI, 2ª pajem do menino Sarvadamana.
ADITI, deusa, esposa de Kassiapá.

 

INTRODUÇÃO

CORO (canta):
“Que o Senhor do Universo vos proteja
e seja sempre misericordioso
sob sete formas:
como o sol e a lua regulando o tempo;
como o fogo vai levando ao céu o incenso;
como o espaço infinito onde vibram os cantos de amor;
como o ar e a água mantendo a vida;
como a terra, que é mãe – oh, oh, Mãe, ô, ô –
e nutriz de todo germe…
Que o Senhor vos proteja!”

 

PRIMEIRO ATO

Bosque dos eremitas. No cenário deve haver uma árvore (mangueira) e um pé de jasmim encostado a ela.
Rei Ducianta e seu Arqueiro; o velho eremita e seu discípulo Saravata; Sakuntala, com suas amigas Anassuía e Prianvadá.

(O rei Ducianta entra, armado de grande arco, assistido por seu arqueiro, que carrega a aljava com as setas. Ducianta está tentando caçar um antílope.)

ARQUEIRO (olhando ao longe o antílope e depois o rei):
– Ao ver essa gazela que persegues
e ao ver-te, ó rei Ducianta, com teu arco,
parece-me que vejo o próprio Shiva
ao perseguir o antílope que foge.

REI DUCIANTA:
– Arqueiro, ela nos trouxe até bem longe!
Olha! Às vezes parece até que voa.
Ou terá este chão algo de elástico? (faz a mira com o arco; a seta é invisível)
Arqueiro, a minha seta parte agora!

VELHO EREMITA (aparece com seu discípulo Saravata): – Para, ó rei! Este antílope pertence ao nosso eremitério. Não o mates!

ARQUEIRO (espantadíssimo): – Rei! Os dois eremitas se puseram bem na linha de mira de tua seta, só para proteger uma gazela!

VELHO EREMITA (levantando as mãos e curvando-se): – Ó grande rei! Guarda de novo a seta em tua aljava. É bem melhor que movimentes o arco para proteger os fracos do que para ferir um animal inofensivo!

REI DUCIANTA (devolvendo o arco ao arqueiro): – Tens razão, senhor.

VELHO EREMITA: – Esse é um gesto bem digno de um descendente dos Purus. (abençoa-o) Que tua recompensa seja um filho de nobreza sem par, cujos domínios hão de abranger a terra toda.

REI DUCIANTA (inclinando a cabeça): – Agradeço tua santa bênção.

SARAVATA (apontando numa direção): – Poderoso Príncipe, viemos buscar lenha para o sacrifício. Aqui, na orla do Malini, fica o eremitério do grande sábio Kanva. Se outros deveres não te chamam, digna-te a aceitar nossa hospitalidade.

REI DUCIANTA: – E o sábio Kanva está agora em casa?

VELHO EREMITA: – Não. Ele foi a Somatirta propiciar o Destino, que ameaça sua filha Sakuntala com alguma calamidade (1). Ela, porém, está encarregada de receber hospitaleiramente os convidados em sua ausência.

REI DUCIANTA: – Então eu lhe farei uma visita.

SARAVATA: – E nós continuaremos nossa tarefa. (saem de cena)

REI DUCIANTA (olha em volta e diz ao arqueiro): – Percebe-se que este é um lugar sagrado. Olha como a gazela está tranquila, ouvindo sem medo nossas vozes.

ARQUEIRO: – Realmente assim é.

REI DUCIANTA: – Eu vou entrar nesse bosque e purificar a alma. Guarda o arco. Espera-me aqui perto até que eu volte.

ARQUEIRO (saindo em seguida): – Sim, meu senhor.

REI DUCIANTA (dando alguns passos):
– Existe tanta paz neste recinto…
Contudo, minhas mãos trêmulas vibram.
Que dizem estas mãos? Eu sinto aqui
soprar a brisa leve de um mistério…

SAKUNTALA (entrando pelo outro lado e chamando as outras, que a seguem): – Por aqui! Por aqui!

REI DUCIANTA (consigo mesmo): – Ouço vozes… (olha em volta) Ah, devem ser as jovens do eremitério. Vêm aguar as plantas. Como são graciosas… Tais encantos são raros nos palácios. Plantas silvestres muitas vezes vencem as flores do jardim real. Daqui destas sombras posso apreciá-las.

ANASSUÍA: – Sakuntala, podem pensar que o pai Kanva gosta mais das plantas do eremitério do que de ti. És tão delicada quanto o jasmim e, no entanto, tens a tarefa de encher d’água as valetas que circundam as raízes das árvores.

SAKUNTALA: – Mas isso, Anassuía, eu não considero uma tarefa, porque na verdade tenho muito amor por estas plantas. (as três começam a regar)

REI DUCIANTA (consigo mesmo): – Um sábio que mantém no eremitério uma jovem tão delicada é como o homem que tenta rachar o tronco de uma acácia com uma folha do mais fino lótus.

PRIANVADÁ: – Sakuntala, não estás esquecendo o novo pé de jasmim, que sobe junto ao tronco da mangueira (2)?

SAKUNTALA: – Mais fácil esquecer-me de mim. (dirige-se ao jasmim) Que lindo ver os dois juntos assim… A mangueira parece proteger a planta delicada.

PRIANVADÁ: – Anassuía, sabes por que Sakuntala se encanta com esse jasmim?

ANASSUÍA: – Nem imagino. Por que?

PRIANVADÁ: – Vendo o jasmim junto à forte mangueira, ela também sonha em se unir a alguém digno dela…

SAKUNTALA: – Ah, Prianvadá, falas decerto por ti mesma! (continua a rega)

REI DUCIANTA (consigo mesmo): – Ah, se eu pudesse casar com ela… Mas não posso, por ser filha de um brâmane. E eu sou um rei guerreiro, um chátria… (3)

SAKUNTALA (assustada, espanta uma abelha): – Socorro, uma abelha! Ela vai me picar, estou perdida! Livrai-me dela!

PRIANVADÁ (tenta espantar a abelha): – Não consigo, não consigo, Sakuntala!

ANASSUÍA (mais de longe, achando graça): – Pede socorro ao rei Ducianta! É ele o protetor destes bosques sagrados.

SAKUNTALA (fugindo da abelha): – Oh, socorro! Ela continua a me perseguir!

REI DUCIANTA (aparece à frente, de um salto): – Quem ousa molestar jovens tão belas em seus santos deveres nestes bosques?

(Todas olham o rei, embaraçadas.)

ANASSUÍA: – Caro senhor, não foi nada. Apenas nossa querida Sakuntala estava aflita com os ataques de uma pequena abelha.

REI DUCIANTA: – Mas, já está tudo bem então?

ANASSUÍA: – Sim, está tudo bem, agora que fomos honradas com a visita de tão nobre senhor. (a Sakuntala): – Sakuntala, vai buscar no eremitério uma oferenda de flores, arroz e frutas!

SAKUNTALA (vai saindo e diz para si mesma): – Oh, por que será que meu coração está batendo tão forte?

PRIANVADÁ: – Senhor, senta-te aqui à sombra desta árvore. (sentam-se todos)

REI DUCIANTA: – Deveis estar cansadas… Mas… contai-me: Sakuntala é filha do piedoso sábio Kanva?

ANASSUÍA: – Eu explico, senhor. Já ouviste falar de um ilustre sábio de casta real, cujo nome de família é Caucicá?

REI DUCIANTA: – Sim.

ANASSUÍA: – Pois é ele o verdadeiro pai de nossa amiga. Kanva é apenas seu pai adotivo. E sua mãe foi uma ninfa.

REI DUCIANTA (sonhador): – Uma mortal não poderia mesmo tê-la gerado. Não, não poderia. Uma ninfa… O esplendor que ela irradia não vem da terra… (ergue-se e fala à parte): – A esperança cresce. Mas, se as amigas falam do marido com que ela sonha, ainda tenho dúvidas.

PRIANVADÁ (observando-o): – Parece que ainda tens outra pergunta a fazer…

REI DUCIANTA (voltando-se para elas, ainda de pé): – Sim, gostaria de saber se ela viverá sempre a vida de uma asceta. Somente as criaturas deste bosque vão partilhar seu fraternal afeto?

PRIANVADÁ: – Senhor, até hoje ela atendeu às práticas do eremitério e viveu sujeita a seu pai adotivo, mas agora é intenção dele casá-la com um homem digno. (à parte para Anassuía): – Quem será este homem, cujas maneiras desembaraçadas e ao mesmo tempo nobres mostram ser alguém de alta estirpe?

ANASSUÍA (à parte para Prianvadá): – Também estou curiosa por saber. Eu mesma lhe perguntarei. (dirige-se ao rei e as duas se levantam): – Senhor, tuas palavras me animam a perguntar de que régia família nosso nobre convidado é o ornamento, e que terra lamenta agora sua ausência?

SAKUNTALA (entrando assustada e depondo a oferenda sobre uma pedra): – Está acontecendo alguma coisa estranha: os pássaros mansos esvoaçam assustados; nossas gazelas fogem para os apriscos; e a mata estala de tantos rumores!

SARAVATA (fala alto, da entrada): – Jovens, recolhei vossos pavões! Animais perigosos penetraram no bosque cercados pelos caçadores! (vai entrando e vê o rei Ducianta): – Ó generoso rei Ducianta, socorre-nos!

PRIANVADÁ (com espanto): – É o próprio rei!

ANASSUÍA (com espanto): – É o protetor do nosso bosque!

SAKUNTALA (à parte): – Não te perturbes, meu coração! Por que te afliges tanto?

SARAVATA (aponta para fora): – Olha, ó rei! Assustado com o cerco da caçada, um elefante invadiu nosso bosque, amedrontando as gazelas, e impede nossas cerimônias sacras! (sai espavorido, com as mãos na cabeça)

REI DUCIANTA (à parte): – Vou cuidar disto. Foi minha comitiva que perturbou o eremitério.

ANASSUÍA: – Estamos assustadas, senhor.

PRIANVADÁ: – Oh, poderoso rei, permites que nos retiremos para o solar de nossa santa mãe Gautami?

REI DUCIANTA: – Sim, gentis donzelas. Vou cuidar para que nada vos aconteça.

SAKUNTALA (enquanto as outras vão saindo): – O rei perdoa nossa hospitalidade tão pobre?

REI DUCIANTA: – Não digas isso. Vossa companhia foi o melhor presente que eu poderia ter.

SAKUNTALA: – Que os deuses te protejam! (saem cada um por um lado)

 

 

SEGUNDO ATO

Uma planície na orla do bosque. De um lado, o acampamento do rei.
Matávia (alegre companheiro do rei) e o rei Ducianta; Raivatika (guarda-portão) e Badrasena (comandante); o velho eremita e seu discípulo Hariti; Karabhaka (mensageiro da rainha-mãe).

MATÁVIA (entra, suspira, reclama e anda de cá para lá com gestos): – Ai, ai… Que sujeito sem sorte eu sou… Estou caindo aos pedaços por causa da mania que meu real amigo tem pela caça. “Olha uma gazela, Matávia!” “Lá vai o porco selvagem!” “Matávia, vem vindo um tigre!” É sempre esse o estribilho de nossas conversas. Temos sede? Não há o que beber senão a água suja de um riachinho cheio de folhas secas. Comer? Só carne torrada. Dormir está fora de questão, pois se dou uma cochilada, logo acordo com a barulheira horrível dos batedores (4) e caçadores, que rodeiam a floresta antes do nascer do sol e arrebentam meus ouvidos com sua algazarra. E o pior foi ontem. Só porque nos atrasamos e ficamos para trás, meu real amigo penetrou num eremitério atrás de uma gazela e lá, para cúmulo da desgraça, avistou uma bela jovem chamada Sakuntala, filha do eremita. E pronto. Nem quer saber de voltar para casa. Pensa nela o tempo todo. Ih! Lá vem ele. Vou ficar aqui deitado, como quem está exausto. (deita-se)

REI DUCIANTA (entra e fala consigo mesmo): – Seu olhar deixou-me encorajado. E também seus gestos… e os passos hesitantes… Ah… isso alimenta as esperanças de um apaixonado. (vira-se e dá com Matávia deitado)

MATÁVIA: – Ai… meu caro rei… nem posso mover as mãos para te saudar como usualmente. Posso apenas falar para te desejar vitória…

REI DUCIANTA: – Mas, que paralisia súbita é essa?

MATÁVIA: – Isso é o mesmo que perguntar por que sai água do meu olho depois que esbarraste o dedo nele.

REI DUCIANTA: – Não entendi nada. Explica-te melhor.

MATÁVIA: – Quero dizer que tu és a causa de meu estado.

REI DUCIANTA: – Eu?! Mas, como?

MATÁVIA: – Ora, de tanto correr contigo atrás de animais selvagens, meus ossos se desconjuntaram e se estropiaram de todo! Oh, meu caro, deixa-me descansar um dia que seja!

REI DUCIANTA (à parte): – Mal sabe ele que a caça não me interessa mais e que só penso em Sakuntala… Não posso mais curvar meu arco para acertar os animais do bosque tão amados por ela…

MATÁVIA (ergue-se sobre um cotovelo e observa o rei): – Devo estar falando com o vento, pois não me dás a mínima atenção. Discutes contigo mesmo, suponho.

REI DUCIANTA (sorri): – Eu estava apenas pensando que não devo fazer pouco caso do pedido de um amigo.

MATÁVIA (ficando de pé): – Oh! Viva o rei, para sempre! (vai sair)

REI DUCIANTA: – Espera! Precisas me ajudar num outro negócio, que não te vai cansar nem um pouco.

MATÁVIA: – Comer algo delicioso?

REI DUCIANTA: – Logo saberás. (em voz alta, para os bastidores): – Olá! Está aí o guarda-portão?

RAIVATIKA (entrando): – Quais são as ordens do meu rei?

REI DUCIANTA: – Raivatika! Chama-me o comandante da guarda!

(O guarda-portão sai e volta com o comandante da guarda.)

BADRASENA: – Vitória ao rei! Seguimos a pista dos animais até seus covis na floresta. Por que esta demora, se está tudo pronto?

REI DUCIANTA: – Ah, Badrasena, é que meu amigo Matávia esteve depreciando a caça até me tirar todo o gosto por ela.

BADRASENA (à parte, para Matávia): – Não adianta, meu camarada, eu hei de convencer o rei! (em voz alta, para o rei): – Este cabeça dura diz asneiras. Pensa, ó rei, no prazer que a caça nos dá. O caçador é só agilidade e valentia. E quando sua flecha atinge o alvo numa curva perfeita… (faz gestos)

MATÁVIA (zangado com Badrasena): – Fora, tentador! Fora! O rei acabou de recobrar a razão. Quanto a ti, podes vagar pela floresta à vontade, até que um velho urso te agarre pelo nariz e te faça em pedaços.

REI DUCIANTA: – Meu bom Badrasena, como estamos justamente nas vizinhanças de um bosque sagrado, deixemos por agora os animais tranquilos. Com a corda afrouxada, meu arco vai ter um longo repouso. Chama de volta os batedores, para que não perturbem este santo retiro.

BADRASENA: – Se é do agrado do meu rei, que assim se faça.

REI DUCIANTA (ao guarda-portão): – E tu, Raivatika, fica de guarda!

RAIVATIKA: – Sim, Majestade. (os dois saem)

MATÁVIA: – Até que enfim estamos livres dessas pragas, que ficaram zumbindo em volta de nós como um bando de moscas. Vem, senta-te aqui à sombra desta árvore, e eu me sentarei a teu lado bem confortavelmente… (eles se sentam)

REI DUCIANTA: – Ah, Matávia, pode-se dizer que nunca contemplaste nada tão digno de ser visto quanto a bela Sakuntala.

MATÁVIA: – Para provocar a admiração do grande homem que és, só mesmo algo muito surpreendente. Mas…

REI DUCIANTA: – Oh, meu amigo… O Criador, com sua vontade poderosa, uniu em sua mente eterna o que havia de mais puro e belo e… deu-lhe forma.

MATÁVIA: – E ela chegou a te olhar com simpatia?

REI DUCIANTA: – Moças criadas num eremitério são naturalmente tímidas e reservadas. Assim, metade do seu amor ela me revelou; a outra metade ela deixou para ser adivinhada…

MATÁVIA: – Hum… Bem, vejamos: fizeste um bom estoque de provisões? (passa a mão pelo estômago com ar de fome) Pois, pelo visto, pretendes vagar por aqui um bom tempo ainda.

REI DUCIANTA: – Ora, Matávia, nem estou pensando nisso. Deves saber, isto sim, que preciso da ajuda de tua fértil imaginação. Planeja-me uma desculpa para voltar ao eremitério.

MATÁVIA: – De estômago vazio? Não me vem ideia alguma.

REI DUCIANTA: – Está bem, está bem. Pensarei nas provisões. E então?

MATÁVIA: – Ora, és o rei, não és? Voltarás para buscar a sexta parte do grão, que os eremitas te devem como tributo.

REI DUCIANTA: – Não, não, seu tolo! Aqueles eremitas, com suas orações, me pagam um tributo muito mais valioso que um montão de ouro. Dádivas como essas duram para sempre. Não se desfazem em pó.

RAIVATIKA (entra): – Vitória ao rei! Dois eremitas esperam lá fora e solicitam uma audiência.

REI DUCIANTA: – Pois faze-os entrar!

(Raivatika sai e volta com o velho eremita e seu discípulo Hariti, que ficam de um lado falando um com o outro.)

HARITI: – Que semblante majestoso!…

VELHO EREMITA: – Por que te espantas, Hariti? Esse é o grande rei Ducianta, amigo dos deus Indra. (aproxima-se; Hariti oferece frutas ao rei): – Vitória ao rei!

REI DUCIANTA (recebe as frutas respeitosamente): – Dizei, eu vos peço, o motivo de vossa visita.

VELHO EREMITA: – Senhor, na ausência de Kanva – nosso superior e grande sábio – demônios do mal estão perturbando os rituais. Os habitantes do eremitério suplicam ao rei que passe alguns dias no eremitério, acompanhado de seu arqueiro.

REI DUCIANTA: – Vosso convite muito me honra.

MATÁVIA (à parte): – Hum… Convite, aliás, oportuníssimo…

REI DUCIANTA (ao guarda-portão): – Raivatika! Vai dizer ao arqueiro que prepare meu arco e a aljava com as setas!

RAIVATIKA: – Sim, majestade. (sai)

REI DUCIANTA (aos eremitas): – Ide, senhores, que eu irei em seguida. (a Matávia, depois que os dois eremitas saem): – Meu caro Matávia, não estás ansioso por conhecer Sakuntala?

MATÁVIA: – Para ser franco, há poucos momentos eu estava cheio de vontade de vê-la, mas agora estou vazio de todo, desde que ouvi as notícias sobre os demônios (faz um gesto de medo e repulsa).

REI DUCIANTA: – Ora, não tenhas medo! Eu estarei do teu lado.

RAIVATIKA (entra): Majestade, o arqueiro está pronto. Mas acaba de chegar um mensageiro da parte da rainha tua mãe.

REI DUCIANTA: – Que dizes? Um mensageiro da venerável rainha? Introduze-o imediatamente!

(Raivatika sai e volta com o mensageiro, que se inclina diante do rei.)

KARABHACA: – Vitória ao rei! A rainha-mãe ordena que te diga que pretende celebrar solene cerimônia para a prosperidade e a proteção de seu filho, daqui a 4 dias (5). Ela espera que o rei vá honrá-la com sua presença nessa ocasião.

REI DUCIANTA: – Ora, tenho aqui um sério dilema: de um lado a missão a ser executada para aqueles santos homens; de outro, a ordem de minha venerável mãe. Que fazer?

MATÁVIA (com gestos e demonstrações): – Terás de assumir uma posição intermediária. Tal como o rei Trisanko, que ficou suspenso entre o céu e a terra, porque o sábio Visvamitra ordenou-lhe que subisse aos céus, e os deuses ordenaram-lhe que descesse.

REI DUCIANTA: – Estou perplexo! Dois deveres em lugares opostos… (reflete): – Amigo Matávia, como foste meu companheiro de infância, a rainha já te aceitou como um segundo filho; vai até ela e conta-lhe do meu solene compromisso de socorrer os santos homens. Poderás tomar meu lugar na cerimônia e fazer o papel de um filho da rainha.

MATÁVIA: – Vou com o maior prazer do mundo; (disfarçando) mas não penses que tenho realmente medo daqueles insignificantes demônios.

REI DUCIANTA: – Claro que não! Um grande brâmane como tu não poderia de forma alguma dar lugar a tal fraqueza.

MATÁVIA (cheio de si): – Até já me sinto como um jovem príncipe! (despede-se do rei): – Boa vitória ao rei! (sai junto com o mensageiro)

REI DUCIANTA (sai por outro lado): – Adeus, amigo!

FIM DO SEGUNDO ATO

 

(continua)

 

Havendo interesse em representar a peça, enviaremos o texto completo em PDF. A escola deve solicitar pelo email: [email protected]
Favor informar no pedido o nome da instituição, endereço completo, dados para contato e nome do responsável pelo trabalho.

 

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